Opinião
Deputados contra meninas vítimas de estupro
A aprovação do PDL 3/2025 é um marco da degradação moral do país, mas o Senado ainda pode impedir esse retrocesso
Na noite de 5 de novembro, o Brasil assistiu, atônito, à aprovação do PDL 3/2025, projeto que suspende a Resolução 258 do Conanda, responsável por organizar o atendimento de meninas vítimas de estupro. Em um só gesto, a Câmara dos Deputados decidiu desmontar a única norma nacional que orientava o acolhimento dessas crianças e adolescentes no sistema de saúde e assistência social.
Foi uma sessão vergonhosa, marcada por desinformação, misoginia e violência política contra as poucas deputadas que tentaram defender o óbvio: nenhuma criança deve ser forçada a levar adiante uma gravidez decorrente de estupro. Em vez de proteger a infância, a Câmara escolheu humilhar meninas violentadas. Em vez de garantir direitos, optou por transformá-las em instrumentos de disputa ideológica.
A proposta de revogação da resolução não é um ato administrativo qualquer. É um passo consciente rumo à normalização da violência sexual infantil. Ao tentar desmontar protocolos de proteção e desautorizar profissionais que acolhem vítimas, o Parlamento envia a mensagem de que o corpo das meninas pode continuar sendo violado sem consequência. Premia a impunidade e reforça o pacto que sustenta o estupro como rotina social.
A Resolução 258 não cria novos direitos. Ela apenas detalha como o Estado deve cumprir o que está previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente e, desde 1940, no Código Penal: o direito ao aborto legal em casos de violência sexual. Sua revogação significa um retrocesso brutal. Sem ela, profissionais de saúde, escolas, conselhos tutelares e unidades de assistência perdem diretrizes para agir com segurança e rapidez diante de situações de violência sexual. Em um país onde 87% das vítimas de estupro são meninas, majoritariamente negras, e 84% são violentadas por familiares, esse apagão de protocolos é uma sentença de revitimização.
O discurso que venceu na Câmara não foi o da proteção, mas o da manipulação. Parlamentares distorceram o conteúdo da resolução, repetindo falsidades grotescas, como a ideia de que ela “legalizaria o aborto até nove meses”. A mentira foi usada como arma política. A votação tornou-se um palanque de desinformação e de hostilidade às mulheres. É revelador que, no mesmo dia em que defenderam a vida de animais silvestres, tenham votado para abandonar crianças violentadas. Um contraste moral que dispensa adjetivos.
Ao derrubar a resolução, a Câmara institucionalizou a omissão. Escolheu manter tudo como está: meninas sendo estupradas, engravidadas, silenciadas. E agora também abandonadas. Não há neutralidade possível diante disso. Forçar uma criança a parir é tortura, reconhecida como tal pelos organismos internacionais de direitos humanos. É negar-lhe saúde, educação e infância. É perpetuar um sistema patriarcal que transforma a dor das meninas em espetáculo e em capital político.
O que vimos no plenário foi também um sintoma de misoginia institucional. As deputadas que ousaram se opor ao PDL foram interrompidas e insultadas por colegas homens. A Câmara expôs, em rede nacional, o desprezo por quem ousa defender os corpos e a autonomia das mulheres. Mas se a Câmara se curvou ao obscurantismo, a sociedade reagiu. Logo surgiram vídeos como da atriz Luana Piovani e da cantora Anitta, que denunciam o “PDL da pedofilia”. E milhares de pessoas passaram a repetir o grito que ecoa desde 2020: Criança Não É Mãe!
Agora, o projeto segue para o Senado. A pergunta é simples: o Senado vai repetir a vergonha da Câmara?
Cuidar das nossas crianças não é obrigá-las a pagar com seus corpos pela violência que sofreram. Cuidar é acolher, proteger e garantir saúde e dignidade. É devolver o futuro para uma geração de meninas.
A aprovação do PDL 3/2025 é um marco da degradação moral do país, mas o Senado ainda pode impedir esse retrocesso.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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