Boaventura de Sousa Santos

Doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale e Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.

Opinião

Depois do conflito, o mundo aprofundará a polarização entre os EUA e a China

Desta vez, será entre o capitalismo das multinacionais e o capitalismo do Estado chinês

Boaventura de Sousa Santos na redação de CartaCapital (Foto: Wanezza Soares)
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Como não bastasse a crise global causada pela pandemia, o mundo acaba de entrar numa nova e grave fase de deriva bélica, que o pode mergulhar numa crise ainda maior. A causa próxima desse agravamento é a invasão da Ucrânia, e o autor dela é Vladimir Putin. Vive-se um momento de tensão extraordinária que se expressa na incidência midiática da crise da Ucrânia, sobretudo no eixo Atlântico Norte, o qual inclui também a Austrália, o Japão  e o Brasil.

Noutras regiões do mundo, a crise da Ucrânia ou é relativizada por dizer respeito a agressões armadas (invasões, bombardeamentos, mortes de civis inocentes) de que elas têm sido repetidamente vítimas ou por estarem neste momento a confrontar-se com outros problemas que lhes parecem mais graves ou, ao menos, mais próximos (fome, falta de água e de vacinas, violência jihadista). E quando a crise da Ucrânia assume alguma dramaticidade é por temas que não são visíveis ou não têm significado quando vistos da perspectiva da opinião pública do eixo do Atlântico Norte. Por exemplo, a União Africana acaba de emitir um veemente comunicado contra o comportamento “chocantemente racista” das autoridades das fronteiras entre a Ucrânia e a Polônia, ao discriminarem contra cidadãos africanos a viver na Ucrânia e a tentar fugir da guerra, submetendo-os a um tratamento desigual em razão da sua cor.

Neste momento, é quase cruel pensar em quem serão os ganhadores desta crise. Alguns parecem óbvios. Tal como aconteceu no fim da Segunda Guerra Mundial, a crise econômica na Europa significa um boom para a economia norte-americana. Entre os mais beneficiados está, certamente, a indústria militar de vários países e, sobretudo, a dos EUA, tendo ao seu dispor um novo campo de intensa militarização que lhe foi oferecido pela trágica aventura de Putin. E, pela mesma razão, os neocons norte-americanos, que dominam a política externa dos EUA desde o 11 de Setembro, parecem estar a ter uma vitória depois de tantos fracassos.

A HUMILHAÇÃO DA RÚSSIA PODE TER CONSEQUÊNCIAS IMPREVISÍVEIS, SOBRETUDO PARA A EUROPA

Quanto ao futuro, duas notas parecem impor-se. A primeira é sobre as consequên­cias da provável humilhação russa. Os EUA não se deram por satisfeitos com o fim da União Soviética nem com o fato de verem Mikhail Gorbachev a fazer o anúncio publicitário da Pizza Hut na televisão russa em 1998. Nas últimas três décadas têm vindo a ignorar as preocupações da Rússia com a sua segurança, sobretudo nos anos mais recentes, quando se tornou claro que o país seria o aliado preferencial da China, que, entretanto, emergia como o grande rival dos EUA. Sem dúvida, a China não sai fortalecida desta crise porque, sendo um império ascendente, tem, sobretudo, interesse na liberalização do comércio. Mas a humilhação da Rússia pode ter consequências imprevisíveis, sobretudo para a Europa. Em 1919, a Alemanha assinava o Tratado de Versalhes com que terminava a Primeira Guerra Mundial. Um jovem economista inglês, de 35 anos, John Maynard Keynes, abandonava a conferência de paz em protesto contra as condições excessivamente punitivas impostas pelos aliados à Alemanha. Keynes previa que as exageradas reparações e outras duras condições impostas levariam ao colapso da Alemanha, o que teria consequências econômicas e políticas sérias na Europa e no mundo. Revelou-se profético. Infelizmente, o mundo não parece dispor hoje de um Keynes.

A segunda nota refere-se ao governo mundial. Depois da crise da Ucrânia, o mundo estará mais polarizado do que nunca entre os EUA e a China. Os EUA continuarão o seu declínio histórico e aumentarão a sua agressividade para garantir zonas de influência. Acabam de consumar a conquista da Europa, uma oferta de Putin. No futuro, as regiões do mundo que, por qualquer razão, não se quiserem alinhar inteiramente, vão ter mais dificuldades para o conseguir. A infame ingerência do regime change, até hoje um ato exclusivo dos EUA, acaba de ser agora tentado de modo desastroso por Putin. Até quando a China confiará na atratividade das suas propostas para se dispensar do recurso do regime change? Uma das razões que levaram os EUA a fazerem colapsar a Iugoslávia foi o fato de ela ser a presença, ainda que tênue, do Movimento dos Não Alinhados na Europa, um movimento nascido em 1961, por iniciativa, sobretudo, de jovens países saídos do colonialismo europeu (Índia, Indonésia, Egito, Gana), que se propunham a seguir um caminho de desenvolvimento próprio, equidistante do capitalismo ocidental e do socialismo soviético. Nas próximas décadas, vai impor-se um movimento com o mesmo espírito. Desta vez, será entre o capitalismo das multinacionais e o capitalismo do Estado chinês.

Para além disso, vai impor-se a emergência de sujeitos políticos globais que sejam porta-vozes dos interesses das sociedades civis e das comunidades muitas vezes esquecidas, abandonadas ou desinformadas por governos cada vez mais reféns de interesses econômicos e financeiros globais e imperiais. A ONU é uma organização de Estados, e a tentativa de Kofi Annan para torná-la mais aberta à sociedade civil fracassou. Depois da crise do Iraque e da Ucrânia, a ONU seguirá no caminho do descrédito. E este aprofundar-se-á tanto mais quanto maior for a sua subserviência aos interesses geoestratégicos dos EUA. Se vivemos permanentemente em guerra, apesar de os cidadãos comuns do mundo (excetuando aqueles ligados à indústria militar ou aos exércitos de mercenários) quererem viver em paz, não será tempo de termos uma voz organizada e global que se faça ouvir? •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1198 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O futuro entre ruínas”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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