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Depois de por abaixo a ‘geringonça’, a esquerda portuguesa chega enfraquecida às eleições

Pode ser, como espero, que o Partido Socialista ainda ganhe as eleições. Mas o cenário político mudou irreversivelmente

Imagem: Partido Social e Partido Social Democrata
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Quando esta revista chegar às bancas, na sexta-feira 28, estará a decorrer em Portugal o último dia de campanha eleitoral. Infelizmente, não posso vos dizer quem vai ganhar porque não está claro quem será o vencedor. Ao contrário do que costuma acontecer, todas as pesquisas publicadas nos últimos dias dão como resultado um empate técnico entre os dois maiores partidos, o socialista, de centro-esquerda, e o social-democrata, de centro-direita. Há muito não se via uma eleição com resultado tão incerto. E, no entanto, ainda há duas semanas, todos os analistas e todas as sondagens davam uma vantagem de 7 a 10 pontos aos socialistas. Que se passou? Bom, talvez seja melhor vos fazer um breve enquadramento.

Vista de certa forma, a história destas eleições é a história da “geringonça”, que começou há mais de seis anos, nas eleições legislativas de 2015. Naquelas eleições, a coligação de direita ficou à frente, mas em minoria no Parlamento, do qual depende o governo. Nesse quadro parlamentar, os três partidos de esquerda uniram-se num acordo escrito com vista a dar suporte a um governo constituído apenas pelo PS, mas com apoio majoritário na Assembleia da República. Assim começou a aventura da “geringonça”, que ficou a dever o seu nome ao excêntrico tripé político em que assentou – os socialistas, o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista, três legendas com uma cultura política histórica de grande hostilidade entre si. Em quatro décadas de ­democracia, nunca tinham construído um programa comum.

Contra todas as expectativas, a fórmula política revelou-se um sucesso. Primeiro, trouxe para a responsabilidade da governança os partidos de esquerda cuja tradição política estava ligada à retórica de puro protesto. Depois ofereceu uma estabilidade sem sobressaltos durante os quatro anos em que durou a legislatura. Finalmente, resultou em uma gestão bem-sucedida, com bons indicadores na economia e no reforço das políticas sociais que procuraram compensar o período de austeridade entre 2011 e 2015.

Em quatro anos, a “geringonça” ganhou popularidade no País e uma certa admiração no exterior. Partiu confiante para as eleições de 2019 e ganhou-as facilmente. No dia seguinte, começou o seu fim enquanto fórmula governamental. Como aqui escrevi em outra ocasião, a geringonça é um caso invulgar de uma política que não resiste ao seu próprio sucesso. Seu declínio começou imediatamente a seguir às eleições, quando os partidos decidiram não fazer um acordo escrito para a legislatura, reservando a negociação para os momentos de aprovação do orçamento de Estado. Em 2020, o Bloco de Esquerda foi o primeiro partido a sair do barco e a votar contra. Naquele ano, a votação a favor do Partido Comunista foi suficiente para segurar o governo, mas a “geringonça” ficou coxa à frente de todos. Um ano depois, os comunistas juntaram-se ao Bloco de Esquerda na recusa do Orçamento e o governo caiu. As eleições foram então marcadas para este domingo.

Os partidos progressistas não aprenderam com os próprios erros

Convocadas as eleições, o panorama apresentava-se fácil para os socialistas e para o seu líder. Objetivamente, o governo tinha bons resultados para apresentar nas duas áreas críticas: pandemia e economia. Tinha ainda o trunfo de se apresentar como vítima de uma votação injusta dos seus parceiros à esquerda e o fato de estes terem votado ao lado da direita para o derrubar no Parlamento. A campanha parecia fácil e as primeiras sondagens confirmavam esse cenário, com o PS perto dos 40% de intenções de voto. A maioria absoluta no Parlamento parecia possível. De repente, tudo mudou.

Nestes últimos dois meses, há dois momentos fundamentais que explicam a reviravolta de uma eleição ganha à partida para uma disputa sem vencedor antecipado. O primeiro e mais importante aconteceu quando o líder da oposição foi desafiado internamente por um rival apoiado pelos barões do partido. Depois de uma campanha difícil contra a direita institucional e orgânica, contra a direita dos meios de comunicação social e contra a direita dos comentadores políticos, o líder Rui Rio ganhou as eleições prévias no PSD. A imagem de um líder fraco transformou-se num instante naquela de um líder capaz de enfrentar e vencer em circunstâncias adversas. O segundo momento é o do debate entre os dois candidatos a primeiro-ministro. Contra todas as expetativas, Rio indiscutivelmente superou António Costa no debate. Mais energia, mais ambição, mais discurso de futuro. Como muitas vezes acontece, fica a impressão de que o apelo à mudança é mais forte do que a defesa da continuidade. A erosão e o cansaço dos eleitores com os seis anos do governo socialista começam a notar-se. Daí para a frente, na primeira semana de campanha, a direita não parou de crescer e o PS não parou de descer. Na terça-feira 25, foi publicada a primeira pesquisa que mostra a direita à frente, embora apenas por cerca de 1 ponto porcentual. Um empate técnico, para todos os efeitos. Há, no entanto, um fato indiscutível, a paisagem política mudou. E, como sempre acontece, mudou por mérito da liderança da direita, que se apresenta como alternativa, mas também por demérito próprio da esquerda.

Bem-vistas as coisas, julgo que não há dúvida de que os portugueses consideram a crise política, resultante da reprovação ao orçamento, como uma aventura e uma irresponsabilidade. O Partido Socialista, que se apresentou inicialmente como vítima, aparece agora como responsável. A impaciência dos eleitores com a pandemia acabaria por revelar-se também na irritação que muitos exprimem como o que consideram ser os jogos de poder entre os três parceiros da coligação parlamentar. Todavia, o que é extraordinário é que esse filme parece repetido. Há dez anos, os partidos à esquerda do PS votaram ao lado da direita para rejeitar o acordo que o governo socialista tinha feito com as instituições europeias para evitar que o país pedisse assistência financeira. O resultado foi uma catástrofe. A crise política daí resultante obrigou Portugal a pedir socorro externo e a direita ganhou as eleições. O que se seguiu foi o programa mais neoliberal a que o ­país foi submetido: privatizações, redução da proteção laboral, redução de apoios sociais. Foi o mais agressivo ajuste de contas com o Estado Social desde a revolução democrática. Dez anos depois, a esquerda parece não ter aprendido nada. Tudo igual, tudo desesperadamente igual. Pode ser, como espero, que o Partido Socialista ainda ganhe as eleições. Mas o cenário político mudou irreversivelmente. Não há, infelizmente, outra forma de o dizer: o fim da “geringonça” representa o fracasso de toda a esquerda. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1193 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE FEVEREIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Fadiga de material”

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