

Opinião
Dengue na Provence
O surto da doença no sul da França, fruto do aquecimento global, mostra que estamos todos no mesmo barco e que o planeta precisa, urgentemente, de energia limpa


As mudanças climáticas extremas são uma realidade e podem ser constatadas a todo momento mesmo pelo mais negacionista dos seres humanos. São fruto da nossa irresponsabilidade em cuidar do planeta e devem, num futuro próximo, ter um profundo impacto na nossa vida e na de nossos descendentes.
A humanidade tem se descuidado dela mesma e do planeta ao consumir de forma irresponsável, gerar cada vez mais lixo e ignorar práticas de educação e sustentabilidade. Nossos recursos naturais são finitos e não conseguem se repor na mesma velocidade com que são extraídos.
Vivemos o século das pandemias. Doenças desconhecidas surgirão cada vez mais frequentemente, trazidas à civilização tanto pela invasão e destruição de biomas e regiões selvagens quanto pelo aquecimento global. O degelo dos polos levará aos oceanos bactérias, vírus e fungos desconhecidos do homem contemporâneo, que jaziam há milênios em fósseis e seres congelados das eras glaciares, no permafrost.
Nesse contexto, não apenas doenças inéditas para a humanidade atual surgirão mas também males já conhecidos poderão aparecer em locais inusitados. É esse o caso do surto de dengue no verão de 2023 na Provence, na França. O aparecimento de mais de cem casos autóctones da virose na região levou o governo francês a adotar medidas para combater o mosquito que, conduzido por correntes de ar quente, migrou da Ásia e da África para o sul da França.
Antes do aquecimento global, o Aedes aegypt, vetor da dengue, não tinha como alcançar aquelas paragens. Também conhecido como mosquito-tigre-asiático, por causa de suas listras pretas e brancas, ele pica pessoas infectadas com o vírus e o transmite para pessoas sem a doença.
Seus sintomas incluem febre alta, dor de cabeça e dores em torno dos olhos e osteomusculares intensas – daí a dengue ser conhecida como febre quebra ossos. Depois que a febre se vai, em torno de três a quatro dias, começa a fase de melhora ou, em alguns casos, a instalação da fase de queda das plaquetas e hemorragias que podem evoluir para insuficiência de órgãos como rins, fígado e pulmões. A doença pode ser fatal e especialmente grave nas crianças.
Habitualmente, a dengue é encontrada em países de clima tropical ou subtropical, principalmente nas áreas urbana e suburbana. O maior reservatório do mosquito são águas limpas paradas, como aquelas presentes em vasos de plantas, pneus, lixo em terrenos abandonados e piscinas sem manutenção.
Não existe remédio específico para a dengue, mas o diagnóstico precoce e a hidratação vigorosa podem salvar vidas. O Brasil e vários países da América Latina estão sofrendo atualmente com um surto de enormes proporções, com taxas de mortalidade e infecção altíssimas. É importante ressaltar que temos vacinas disponíveis em número escasso e que, por serem grupo de maior risco, as crianças são priorizadas.
Mas voltemos à dengue na Provence, que nos remete a um cenário apocalíptico: uma doença prevalente em países pobres alcança o mundo desenvolvido e há previsões de que, no próximo verão europeu, se espalhe por outras regiões da França e pelo Reino Unido.
Essa é a deixa para que a corrida por vacinas e tratamentos antivirais para a doença se intensifique e consigamos imunizar a população mais pobre do Sul global, reduzindo a disseminação da doença no mundo. Pois é, caro leitor, dependemos mais uns dos outros do que imaginamos.
O planeta e a humanidade necessitam de atenção urgente. A boa notícia é que, pelo que observamos no período da pandemia da Covid-19, a Terra parece ter um poder de regeneração rápido. Quem não se lembra da imagem de golfinhos nos canais de Veneza e da queda dramática da emissão de gases poluentes na atmosfera durante os meses de lockdown? Isso representa uma luz no fim do túnel.
Ainda é possível agir e cada segundo importa. Estamos, de acordo com alguns estudiosos, no decênio decisivo para a sobrevivência do planeta. É urgente investir em energia limpa. É urgente impedir a destruição de florestas, a exploração desenfreada e sem sustentabilidade dos recursos da natureza, assim como é urgente combater a poluição ambiental e investir em educação e saneamento básico.
É urgente cessar o desperdício de vidas, dinheiro e recursos em guerras intermináveis e olhar para o planeta. Não para o bem-estar de alguns, mas para a sobrevivência de toda a humanidade. O resumo da ópera é que estamos todos no mesmo barco. •
Publicado na edição n° 1307 de CartaCapital, em 24 de abril de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Dengue na Provence’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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