Educação

Democratizar a psicanálise é preciso, bacharelado em psicanálise não é preciso

Racismo e o elitismo dentro das instituições de psicanálise precisam ser questionados

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Num dos livros mais recomendados a jovens analistas e igualmente lido por quem deseja enveredar pela Psicanálise, Contardo Calligaris afirma que para ser um ou uma analista muitas vezes é necessário investir um valor de um carro ou apartamento. Ele narra os seus percalços e também que contou com a ajuda da família para financiar – direta ou indiretamente – a sua formação. Um relato pessoal autoriza, claro, que um discurso seja descrito como uma experiência singular, mas há algo dessa experiência que é compartilhado por inúmeras pessoas que decidem caminhar pela Psicanálise, a saber: a necessidade de um grande capital para iniciar a formação.

Assim, se considerarmos a análise pessoal, a supervisão e a contribuição à associação é importante reconheçamos que um salário mínimo, ou até mais, dependendo da região, pode ser o valor da “mensalidade” para se tornar analista, com uma prestação que não tem dia e hora para acabar.

Sabemos que é com essa renda mínima que a maior parte das pessoas sobrevive no Brasil. Certamente quem ganha um pouco mais que um salário mínimo não poderá tão pouco reverter o seu dinheiro para bancar a formação em Psicanálise. O resultado disso é que as associações de Psicanálise refletem, como acentua Luciano Elia e Vera Iaconelli, ainda o quadro de desigualdade racial e social que historicamente assola o nosso país.

Não se trata aqui de afirmar que psicanalistas não estejam atuando nos serviços públicos ou que não haja iniciativas em algumas instituições do Brasil como, por exemplo, o Instituto Gerar de Psicanálise, mas de mostrar uma ferida colonial, como diz meu colega Alexandro de Jesus, que não pode cicatrizar enquanto sequer nos dermos conta de que não sentimos a latitude dessa ferida, nem muito menos a sua profundidade.

Nessa perspectiva, a efetivação de uma graduação em Psicanálise tecida por uma lógica empresarial fomentou a compreensível, justa, necessária e forte articulação pública das entidades psicanalíticas contra o referido bacharelado, denunciando assim a sua inadequação com os pressupostos fundamentais que compõem historicamente a formação de psicanalistas.

Neusa Santos, Franz Fanon e Virginia Bicudo.

Com efeito, a partir do momento em que entram no espaço público para reivindicar o monopólio sobre a formação, as instituições, confortáveis em torno de uma unidade contra um inimigo bolsonarista, parecem ignorar que uma graduação em Psicanálise, por mais estapafúrdia que possa ser, é também sintoma de um desejo, ainda que capturado pela lógica mercadológica de uma empresa privada, de várias pessoas de se tornarem psicanalista.

Sem considerar esse desejo, o debate ensejado pelas associações apenas reafirma, talvez de modo inconsciente, que a Psicanálise é algo para poucos ou para aqueles e aquelas que podem investir uma alta quantia na sua formação. As associações reafirmam a legitimidade das suas formações, concentradas historicamente nas instituições de psicanálise, divididas muitas vezes por diferentes motivos, na mesma medida em que reafirmam a sua exclusividade para um grupo seleto de pessoas.

Quem pode arcar com os valores de uma formação? Quem tem condições materiais de bancar o seu desejo?

Notemos e elaboremos o nosso narcisismo! Não se trata aqui do que cada pessoa individualmente faz para atenuar essa desigualdade ou como cada pessoa reserva a sua quantidade de vagas sociais na sua clínica ou atua no serviço público. A questão é radical e como tal estrutural! Refiro-me à formação.

Quantas pessoas que estão em formação nas grandes sociedades pertencem às classes sociais menos privilegiadas? Quantas pessoas negras estão nos quadros dos e das analistas dessas sociedades? E nas leituras que compõem o arcabouço formativo de nossas instituições; onde estão os autores negros e autoras negras?

Entendo que entre as associações reine a ideia de que temos um inimigo comum e, numa lógica Hobessiana, devemos nos prontificar numa trincheira comum contra a graduação em Psicanálise. No entanto, o que minhas reflexões portam é que a materialidade de um inimigo comum, inscrita num curso de graduação caça níquel, não pode eclipsar que esse espaço, cujo uma visão empresarial deseja ocupar, é o resto ou enorme resíduo inconsciente que a Psicanálise, na figura de várias de suas associações, ainda que com notáveis exceções, não deseja perceber, nem muito menos elaborar na sua devida amplitude.

Nesse sentido, a reunião em torno de um inimigo comum parece de alguma forma isentar as instituições, pelo menos parte delas, de ao menos refletir sobre toda carga de privilégios que elas pressupõem, sem os quais uma formação em Psicanálise, nos moldes atuais, não se inicia.

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