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Democracia ou morte

Mais uma vez, como muitas outras no passado, o Brasil pede passagem em pleno século XXI para ingressar no Século das Luzes

Democracia ou morte
Democracia ou morte
Para Machado de Assis, a lenda era melhor do que a história. “Prefiro o Grito do Ipiranga”, escreveu. “É mais sumário e mais genérico” - Imagem: François-René Moureaux/Museu Imperial e Marc Ferrez
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Nesta semana das celebrações do 7 de Setembro, Dia da Independência, entendi que seria de bom alvitre tratar dos caminhos e descaminhos da dependência e independências dos cidadãos brasileiros. Esses caminhos e descaminhos foram perquiridos por Machado de Assis. O jovem ­Machado, aos 17 anos, disparou um poema, O ­Grito da Independência, nas páginas do ­Correio Mercantil, edição de 9 de setembro de 1856. As últimas estrofes exprimiam a empolgação do escritor:

O herói libertador, valente e ousado!

Ele, o tronco da nossa liberdade,

Foi como o cedro secular do Líbano,

Que resiste ao tufão e às tempestades!

Ipiranga! Inda o vento das florestas

Que as noites tropicais respiram frescas

Parecem murmurar nos seus soluços

O brado imenso – Independência ou Morte!

Qual o trovão nos ecos do infinito!

Disse ao guerreiro o Deus da Liberdade:

Liberta o teu Brasil num brado augusto,

E o herói valente libertou num grito!

Vinte anos depois, nos idos de 1876, nas páginas da Ilustração Brasileira, o entusiasmo juvenil transmutou-se na sabedoria irônica do observador da vida nativa, retratada nos romances, contos e crônicas. O crítico literário ­Rogério ­Fernandes dos Santos nos esclarece: “A palavra ­Ilustração, que serve de título ao periódico, pode ser entendida sob diversas chaves. Ilustração traz à baila uma série de referências do ideário iluminista do século XVIII, ideário caro à parcela letrada da população do século XIX. Associa-se assim à convicção do caráter civilizador da ciência e da arte. Posto junto à palavra Brasileira que lhe dá especificidade, o termo Ilustração ganha outro brilho ao transferir-se para o Brasil da década de 1870, cujo ‘saber’ e ‘modernidade’ caracterizam um grupo posteriormente conhecido por ‘Geração de 1870’, composto por intelectuais que não só convergem, mas também divergem dos ideais positivistas que desembarcaram no Brasil nesse período”.

VIVEMOS A AMEAÇA DA COABITAÇÃO ENTRE O LIBERALISMO DAS CAVERNAS E OS “LIBERTÁRIOS” DA TORTURA E DAS RACHADINHAS

Na crônica de 1876, publicada dois dias após as celebrações do 7 de Setembro, Machado alinhava considerações a respeito do Grito do Ipiranga:

“Segundo um ilustrado paulista, não houve nem grito nem Ipiranga. Houve algumas palavras, entre elas a Independência ou Morte – as quais todas foram proferidas em lugar diferente das margens do Ipiranga. Pondera o meu amigo que não convém, a tão curta distância, desnaturar a verdade dos fatos. Ninguém ignora a que estado reduziram a História Romana alguns autores alemães, cuja pena, semelhante a uma picareta, desbastou os inventos de dezoito séculos, não nos deixando mais que uma certa porção de sucessos exatos. Vá feito! O tempo decorrido era longo e a tradição estava arraigada como uma ideia fixa.

Demais, que Numa Pompilio houvesse ou não existido é coisa que não altera sensivelmente a moderna civilização. Certamente é belo que Lucrécia haja dado um exemplo de castidade às senhoras de todos os tempos; mas se os escavadores modernos me provarem que Lucrécia é uma ficção e Tarquínio uma hipótese, nem por isso deixa de haver castidade… e pretendentes. Mas isso é história antiga. O caso do Ipiranga data de ontem. Durante cinquenta e quatro anos temos vindo a repetir uma coisa que o dito meu amigo declara não ter existido. Houve resolução do Príncipe D. Pedro, independência e o mais; mas não foi positivamente um grito, nem ele se deu nas margens do célebre ribeiro. Lá se vão as páginas dos historiadores; e isso é o menos. Emendam-se as futuras edições. Mas e os versos? Os versos emendam-se com muito menos facilidade. Minha opinião é que a lenda é melhor do que a história autêntica. A lenda resumia todo o fato da independência nacional, ao passo que a versão exata o reduz a uma coisa vaga e anônima. Tenha paciência o meu ilustrado amigo. Eu prefiro o Grito do Ipiranga; é mais sumário, mais bonito e mais genérico”.

Pois é, meus ilustrados amigos, o fato de um ex-metalúrgico de Garanhuns ­disputar, mais uma vez, voto a voto as eleições presidenciais, poderia indicar que o Brasil ainda se dispõe a reabrir as portas da modernidade. Essa era a abertura que Machado augurava em seu poema e, depois, afiançava em sua crônica de celebração do Grito. Mais uma vez, como muitas outras no passado, o País pede passagem em pleno século XXI para ingressar no Século das Luzes. Mais uma vez ensaia namorar os postulados da Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

Da escravidão colonial a sua versão moderna, o Brasil não nega suas origens. Ulysses Guimarães perseguia a quimera da Justiça, da igualdade e do progresso – Imagem: Acervo/ALMG, Rovena Rosa/ABR e Jean Baptiste Debret

Nas hostes bolsonaristas, há quem ouça com horror estas afirmações e reparta suas angústias entre arrumar as malas e prever o caos. São aqueles que sonham com a democracia dos ressentidos, aquela em que a liberdade de opressão aos mais frágeis não se vexa de surrupiar o manto da liberdade­ de expressão. Nada mais natural num país em que os liberais de um século atrás liam, à noite, Stuart Mill e, pela manhã, acordavam os escravos sonolentos derramando-lhes às costas o óleo do candeeiro que servira de lume.

Desgraçadamente, para os partidários da democracia restrita ou gradual e segura, a experiência do século XX demonstra cabalmente que a busca da modernidade, a aceitação plena das regras das sociedades dinâmicas, a constituição e o avanço do capitalismo pressupõem a presença das massas laboriosas como protagonistas ativos das transformações e do progresso. O resto é uma tentativa inútil de quadrar o círculo ou esquadrinhar ovo para encontrar pelugem.

A ditadura buscou a quimera da “modernização pelo alto” e imaginou que seria possível fazer o bolo crescer para depois repartir os pedaços. O bolo cresceu, mas tivemos de esperar a Constituição de 1988 para buscar os caminhos escarpados dos direitos sociais e econômicos. Direitos que agora estão ameaçados pela coabitação entre o liberalismo das cavernas e os “libertários” da tortura e das rachadinhas. O resultado é que, hoje, o bolo mingua e, em vez da modernidade prometida, curtimos um atraso relativo econômico e social ainda maior do que o registrado no ponto de partida.

Pior que isso: a modernização pelo alto e a famigerada teoria e prática do bolo ampliaram e reproduziram o apartheid social originário do capitalismo escravista. Assim, o natural conflito de classes do capitalismo industrial desenvolve-se num espaço de profundas desigualdades não capitalistas, o que torna extremamente difícil a execução de qualquer política de reformas inspiradas, por exemplo, nos modelos das sociais-democracias europeias.

A consecução da modernidade, isto é, a integração das massas nos padrões de consumo, cultura e convivência oferecidos pelo capitalismo contemporâneo não só exige reformas mais profundas nas relações de trabalho e na organização do Estado, como está atravessada por conflitos no interior das classes assalariadas. Em condições de baixo crescimento econômico, o declínio da vida dos deserdados vai entrar em choque com as perdas de frações importantes da classe média educada e cosmopolita. O jogo de ganha-ganha do crescimento mais alentado e socialmente equilibrado transmuta-se no perde-perde da derrocada socioeconômica.

A MODERNIZAÇÃO PELO ALTO AMPLIOU E REPRODUZIU O APARTHEID SOCIAL ORIGINÁRIO DO CAPITALISMO ESCRAVISTA

O inconsciente social está carregado por esta determinação da sociedade brasileira. As classes médias empenhadas em escapar do descalabro social e cultural do bolsonarismo correm para as candidaturas de perfil mais “moderado”. Muitos, envergonhados de suas escolhas pretéritas, abandonam o náufrago desesperado para agarrar primeiro o salva-vidas que flutua a distância. Mais do que qualquer outra coisa, esses movimentos de aglutinação em torno das candidaturas moderadas também estabelecem limites à atuação concreta dos governos, sobretudo aqueles imbuídos das melhores intenções reformistas. As boas intenções patinam. Não há dúvida de que, nestas condições, uma vertente do desespero pequeno-burguês se infiltra inevitavelmente nas mentes e nos corações sob a forma do único radicalismo que lhe é permitido exercitar: o radicalismo do ressentimento e da destruição do outro.

Ulysses Guimarães perdeu a batalha das diretas para ganhar a democracia. Entregaram-lhe o galardão, a coroa de espinhos da Nova República, infestada dos epígonos da ditadura. Os derrotados transformaram-se em vencedores. Talvez seja uma miragem do Iluminismo adornar a história com as vestes da justiça, da igualdade e do progresso. Mas nenhuma história seria feita se os homens, ou alguns homens, não tivessem se apaixonado por essa quimera. Ainda que esse desvario tenha custado a decepção das ingratidões coletivas, o sarcasmo dos covardes, eles sabiam que era preciso caminhar na direção da estrela mais brilhante, do ideal que não chega, mas pelo qual se dedica a vida.

Navegar é preciso, doutor Ulysses.

Democracia ou Morte! •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1225 DE CARTACAPITAL, EM 14 DE SETEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Democracia ou morte”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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