Delfim Netto

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Formado pela USP, é professor de Economia, além de ter sido ministro e deputado federal.

Opinião

Delfim Netto: A história não obedece a leis

O “cesarismo” do governo nas mídias sociais produzirá mais estragos do que o veto a Ilona Szabó, como já foi o coprológico tuíte

Foto: José Cruz/Agência Brasil
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O problema civilizatório de toda sociedade é construir instituições capazes de articular a “justiça social”, um critério distributivo fluido que confortaria o cidadão mais vulnerável da sociedade, com a “liberdade” de iniciativa. Em outras palavras, acomodar o “individualismo” dentro da “ordem social”, problema diretamente enfrentado por Stuart Mill nos seus Principles of Political Economy with Some of their Applications to Social Philosophy, de 1848, que dominou a disciplina até 1890, quando Marshall publicou seus Principles of Economics. Ambos revelaram preferência pelo “mercado”, compensada por alguma simpatia pela organização dos trabalhadores e pelo socialismo. Desde sempre, aliás, foi evidente que o estudo da “Economia” (Political Economy ou Economics) não deveria cuidar apenas do aumento da eficiência produtiva (aumento da produtividade do trabalho), isto é, do crescimento do total produzido, mas também da sua distribuição entre os que o haviam produzido, que não é, apenas, um problema econômico. Trata-se de um problema político, sempre resolvido pela minoria que, com a concordância ou não da maioria, detém efetivamente o poder em qualquer sociedade, mesmo nas mais democráticas.

A distância que separa a sociedade em que vivemos com relação àquele paradigma civilizatório é abissal. Percorrê-la não será uma linha reta, mas um caminho tortuoso, com avanços e retrocessos experimentais (tentativas e erros), só possíveis num regime democrático sem adjetivos. Este é o único sistema que assegura a transferência do poder em tempo certo e de forma pacífica, componente essencial da “civilização” buscada.

A história é conduzida por “acidentes aleatórios” e suas consequências. É o nosso cérebro que, para pacificar-se, constrói narrativas que o organizam em relações de “causa” e “efeito”. Alguns cérebros peregrinos acabaram acreditando que o “futuro” está, necessariamente, escondido no passado. Logo, este, suficientemente torturado, o revelaria. Trata-se de uma crença extremamente perigosa: como acreditam ser senhores do futuro, conhecem o que e quem podem “descartar” agora porque não farão falta.

Assim “sabiam” Robespierre, Hitler, Mussolini, Stalin, Mao e outros menores, mas não menos convictos. Quando tiveram o poder, todos propuseram um radical recomeço (um renascer, uma palensigenia), através do qual, depois da necessária punição dos males presentes, a corrupção do passado se transformaria na virtude que traria a “salvação nacional”. Todos falharam miseravelmente. Primeiro, terminaram com a liberdade e geraram o terror pela delação. Depois, separaram-se numa “casta” que os afastou da “igualdade” que impuseram ao cidadão comum. Finalmente, estimularam a produção de canhões em lugar de manteiga para os cidadãos que mandaram morrer na guerra…

Toda essa pobre reflexão histórica é para sugerir que Bolsonaro está longe de ser o “efeito” necessário de uma “causa” eficiente: o desastre Dilma-PT e que, na minha opinião, não representa risco constitucional. É, apenas, mais um evento aleatório com o mesmo propósito de Lula-2003 (lembrem-se do “viemos para mudar tudo o que está aí!”), que terminou muito mal. A grande lição é que a troca de ideologia (PSDB, social-democrata (?) e PT, socialismo (?)) não levou a lugar nenhum. Da mesma forma, multiplicar a “ideologia do PT” por menos um, ao contrário do que propõe o setor mais obscurantista do governo Bolsonaro, não vai levar a lugar nenhum. Pode, entretanto, criar resistências desnecessárias contra o bom programa econômico apresentado pelo ministro Paulo Guedes, que dá ênfase simultânea: o aumento da produtividade microeconômica sustentada por uma boa política macroeconômica (equilíbrio fiscal e controle da inflação).

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O governo precisa introjetar que velocidade e precipitação são coisas muito diferentes, que podem gerar muita confusão e consequências antagônicas. Precisa insistir e concentrar-se na sua maior prioridade: a reforma da Previdência necessária, mas não suficiente, para despertar o espírito que alimenta e precede o crescimento econômico. Precisa insistir, como tem feito, no seu absoluto respeito à Constituição de 1988. E, finalmente, abandonar o “cesarismo” das mídias sociais. Este vai produzir mais estragos do que o veto a Ilona Szabó, como já foi o coprológico tuíte que, surpreendentemente, enterrou os “bons costumes”!

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