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Delação sem prêmio

Os testemunhos dos ex-comandantes das Forças Armadas não deixam dúvida sobre o início da execução da tentativa de golpe

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A invasão do Congresso Nacional no 8 de Janeiro. Foto: AFP
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O bolsonarismo foi o maior desafio enfrentado pela democracia brasileira nas últimas décadas. Medo, ódio, ressentimento, decepção, raiva e angústia foram capturados através de narrativas pretensamente legitimadoras da imposição de mecanismos de segregação e violência, em prejuízo da pluralidade e da tolerância. Como se não bastasse a fragilização do sistema de proteção de direitos e das instituições, os mais recentes detalhes da trama golpista, revelados por testemunhos de ex-comandantes das Forças Armadas, nos mostram, inequivocamente, que foi tentado um golpe de Estado.

Já sabíamos que a execução de uma tentativa de ruptura democrática ocorreu através da elaboração de um Decreto de Estado de Defesa. Nos termos da minuta apreendida na casa do ex-ministro Anderson Torres, o então presidente da República pretendia uma declaração jurídica pretensamente legitimadora do golpe. Ocorre que a minuta de decretação de Estado de Defesa foi apenas um dos capítulos da trama golpista.

Os testemunhos dos ex-comandantes das Forças Armadas colhidos pela Polícia Federal revelam detalhes de ­reuniões convocadas por Jair Bolsonaro com o deliberado propósito golpista. Trata-se, indubitavelmente, de condutas inseridas na execução de um golpe, acompanhadas de concentrações populares em quartéis, da explosão de fake news descredibilizadoras do processo eleitoral, dos atos de terrorismo no aeroporto de Brasília e, por fim, dos atos violentos do 8 de Janeiro.

Em outras palavras, o golpe tentado realizou-se em todo um roteiro de condutas que se iniciou com manifestações em frente aos quartéis, passou por reuniões entre os chefes do Executivo e das Forças Armadas e culminou com tentativas concretamente violentas de pressão. Rememoremos, aqui, o ilustre Juarez Tavares, para o qual a tentativa de golpe de Estado é um crime-empreendimento.

Não se pode imaginar um golpe de Estado mais claramente tentado que isso. Se o então presidente, com a minuta de decreto redigida, convocar os chefes das Forças Armadas para lhes propor golpe de Estado não implicar início da execução de uma tentativa de golpe, o conceito estará totalmente esvaziado de sentido.

Vamos aguardar que os elementos de prova sejam valorados à luz do devido processo legal. Asseguradas as devidas garantias, estima-se que se consolide juridicamente a narrativa acusatória e as condenações devidas. Destaque-se, desde já, que os testemunhos dos ex-comandantes das Forças Armadas colhidos pela PF, ao contrário de depoimento feito em sede de delação premiada, possuem elevada carga probatória e devem ser valorados à luz dos demais elementos de prova constantes das investigações, igualmente contundentes.

As possíveis consequências jurídicas do gravíssimo atentado à ordem democrática brasileira são, em tese, aquelas previstas no Capítulo “Dos Crimes Contra o Estado Democrático de Direito”, consoante alterações promovidas pela Lei n.º 14.197, de 1º de setembro de 2021, ao Código Penal, que criminalizam o golpe de Estado e a abolição violenta do Estado Democrático de Direito.

De todo modo, mesmo diante de provas cabais, não há que se falar, ao menos neste momento, na decretação de prisão preventiva do ex-presidente Bolsonaro. O Brasil já foi advertido por cortes internacionais de direitos humanos por banalizar medidas cautelares. Não podemos incorrer em equívocos. A prisão preventiva deve ser medida extrema. O devido processo legal e a ampla defesa devem ter seu curso e gerar condenações, se demonstrada materialidade e autoria. Antecipar condenações é grave ofensa aos direitos fundamentais e humanos.

Se, de um lado, é um erro jurídico negar a tentativa de golpe como crime e também excluir, de plano, a participação do ex-presidente da República no ilícito, por outro, também não é correto ­pleitear a prisão preventiva dos investigados sem razões específicas que a justifiquem.

Há por parte de setores de direita no Brasil, tanto extremistas como não, um grande esforço para se reduzir o impacto jurídico e político do que foi realmente a tentativa de golpe, o que é muito grave para a nossa democracia. No golpe de Estado, o sistema de direitos é atacado. Os direitos não são dados da natureza, e sim uma criação humana. Para existirem, devem ser defendidos de ataques. E não houve, na história recente, maior ataque à democracia senão aquele capitaneado pelo bolsonarismo. •

Publicado na edição n° 1303 de CartaCapital, em 27 de março de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Delação sem prêmio’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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