Celso Amorim

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Diplomata, foi Ministro das Relações Exteriores do Governo Lula (2003-2011) e Ministro da Defesa do Governo Dilma Rouseff (2011-2015).

Opinião

Declaração de Teerã, dez anos depois

Não faz muito tempo, o Brasil era respeitado na arena internacional. Hoje é motivo de chacota e de temor

Amorim, Lula, Ahmadinejad e Erdogan: acordo boicotado
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“Os livros de história guardarão esta data, segunda-feira 17 de maio, quando Brasil e Turquia propuseram à ONU o acordo negociado com o Irã.” Lembrar essa frase, com a qual o importante jornal Le Monde se referiu à Declaração de Teerã, durante o pesadelo que estamos vivendo, imersos na pandemia e no pandemônio – como se disse -, soa coisa do outro mundo.

Quando o nosso principal foco de atenção é saber quantos concidadãos e concidadãs morreram infectados com a covid-19 no dia anterior, outros assuntos parecem distantes ou preocupação de intelectual diletante. Sabemos, no entanto, que o pesadelo que estamos vivendo, desproporcionalmente agravado pela incompetência arrogante do atual governo, um dia passará. E, pensando nesse dia, que esperemos não esteja muito distante, importa recordar que o mundo e o Brasil já foram diferentes.

Independentemente do julgamento que se possa fazer sobre os méritos e as insuficiências das negociações que os governos brasileiro e turco empreenderam com o regime iraniano sobre o seu programa nuclear, a Declaração de Teerã foi, na época, universalmente vista como um fato marcante. Diante de uma grave questão que, para muitos, ameaçava a segurança e a paz internacionais, dois países em desenvolvimento, geograficamente situados em pontos muito diversos do planeta, haviam sido estimulados (no nosso caso, instado) a buscar uma solução pacífica e pelo diálogo.

Pouco importa, sob esse ângulo, que o governo Obama tenha renegado a proposta que ele próprio sugeriu, a qual, ampliada e adaptada às novas circunstâncias, ele viria retomar. Na verdade, o Programa de Ação Conjunto Global (JCPOA, na sigla em inglês), para muitos, não só se inspirou nos esforços turco -brasileiros, como fez mais concessões ao Irã do que a Declaração, ainda que em troca de compromissos adicionais, impostos pelo aumento dos estoques de urânio do país. Não por acaso, o respeitado comentarista internacional de um grande jornal, Clóvis Rossi, diria em uma de suas colunas: “O acordo do Lula era melhor”.

Em 2010, o Brasil atuava internacionalmente com grande desenvoltura em um mundo crescentemente multipolar. Depois de bem-sucedidas iniciativas na América Latina, em que trabalhamos ativamente pela paz interna em certos países (Venezuela, Bolívia) e contribuímos para evitar conflitos armados que estiveram a pique de ocorrer entre vizinhos (entre Colômbia e Venezuela, mais de uma vez, entre aquela e o Equador depois do bombardeio a uma unidade das Farc em território equatoriano), o Brasil foi frequentemente chamado a participar de negociações internacionais.

Cito, como exemplo, o pedido feito pelo primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu ao presidente Lula, no sentido de que o Brasil ajudasse na retomada das conversas entre Tel-Aviv e Damasco sobre as Colinas de Golan. Isso, para não falar do papel de verdadeira liderança que o Brasil exerceu em temas globais, como mudança do clima e comércio internacional, nossa participação no G-20 etc.

Não seria correto afirmar que esse papel se iniciou com os governos do PT. Evidentemente, a figura emblemática do presidente Lula e seu empenho em contribuir para uma ordem internacional mais justa, baseada em uma verdadeira multipolaridade e no fortalecimento das instituições regionais e globais, com a integração sul-americana e a criação de foros como o Ibas e o Brics, permitiu um aprofundamento e uma ampliação de nossa atuação diplomática. Governos anteriores, a partir do fim da ditadura, tiveram posições desassombradas e inovadoras, que, ao longo do tempo, fizeram do nosso país um ator de relevo nas grandes questões internacionais. Pude testemunhar – e, em alguns casos, nelas atuar pessoalmente – iniciativas brasileiras que eram objeto de admiração e respeito.

Do acesso a medicamentos (tema cuja importância crucial ficou ainda mais evidente com a atual pandemia) ao combate ao racismo e à discriminação de gênero, passando por tentativas de uma solução pacífica para o Iraque, o envolvimento do Brasil era ativamente buscado por nossos parceiros, grandes e pequenos, europeus e africanos, superpotências e territórios insulares.

Hoje, tudo mudou. Em uma crise de proporções desconhecidas, desde a Segunda Guerra Mundial, o País está mais do que isolado. É visto com temor. Não por nossa força, mas pela total incapacidade ou, pior, inapetência, para lidar adequadamente com a maior crise sanitária em ao menos um século. Nesse tema, como no das mudanças climáticas, deixamos de ser o parceiro incontornável, sempre pronto a buscar soluções inovadoras e cooperativas, ao mesmo tempo que respeitosas da nossa soberania, para nos tornarmos o pária temido, suscetível de infectar o mundo, a começar pelos vizinhos.

Considerações como essa levaram a que oito personalidades que atuaram na área internacional, incluindo seis ex-chanceleres, firmassem um documento inédito em favor da “Reconstrução da Política Externa”. De forma incomum, os quatro maiores jornais publicaram o artigo, fato que, em si mesmo, denota o reconhecimento do seu caráter histórico. Na essência, o texto buscou no respeito à Constituição de 1988, em especial o seu artigo IV, o ponto central da argumentação crítica dos descaminhos das ações externas do atual governo. O repúdio à vergonhosa submissão a uma potência estrangeira e a defesa de princípios como a não intervenção e a solução pacífica de conflitos foram responsáveis por uma unidade que muitos reputavam improvável.

Para além do seu significado em termos de política externa, o artigo guarda também, a meu ver, outro valor: demonstra que, diante de uma crise profunda, em que a destruição de um vasto patrimônio político, ético e moral é ameaça real, é possível unir pessoas de visões sabidamente distintas, mas fiéis ao discurso racional. Quando se trata de defender a soberania do País, os valores básicos da democracia e, no limite, a própria vida, é não só possível, mas, a rigor, necessário, deixar as diferenças para outro momento e cerrar fileiras na mais ampla das frentes, em favor do humanismo e da sobrevivência.

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