Erminia Maricato

nacional@brcidades.org

Erminia Maricato é arquiteta e urbanista, professora titular aposentada da FAU-USP e coordenadora nacional da rede BrCidades.

Pedro Rossi

Opinião

assine e leia

De todos ou de ninguém

Lições do passado para o futuro das cidades no Brasil

De todos ou de ninguém
De todos ou de ninguém
A favela Cidade das Crianças, em São Paulo, antes da urbanização. Vila Alice, em Diadema, depois da intervenção pública – Imagem: Robson Martins
Apoie Siga-nos no

A desigualdade no Brasil é um fenômeno histórico e estrutural profundamente enraizado na produção do ambiente construído e nas práticas sociais, refletindo um verdadeiro “apartheid social”. Essa desigualdade tem sido intensificada pela globalização neoliberal, que promove a concentração da riqueza, o enfraquecimento dos Estados nacionais e ataques às democracias, exacerbando as discrepâncias socioeconômicas em um contexto marcado por mais de 300 anos de dominação colonial e quase 400 anos de escravismo. Esse passado fomentou práticas permanentes e persistentes de exclusão social em especial, o que nos interessa aqui, em relação à propriedade formal da terra no campo e na cidade, expulsando a maior parte da população negra e pobre para as periferias invisibilizadas e cuja escala é desconhecida no Brasil. Não estamos nos referindo apenas às favelas, onde moram 16 milhões de brasileiros, conforme dados do IBGE de 2022, mais de 8% da população do País, mas à informalidade (ou ilegalidade) generalizada que engloba mais da metade da população urbana metropolitana.

As mudanças ocorridas no século XX no mundo ocidental, em especial durante a transição do welfare state para políticas neoliberais a partir dos anos 1970, não alteraram significativamente a desigualdade territorial em países do capitalismo periférico como o Brasil, onde o Estado de Bem-Estar Social nunca foi universalizado. Mas, certamente, a partir do fim do século XX, a desindustrialização, o enfraquecimento da classe trabalhadora, a volta do protagonismo das atividades agro-pecuária-mineral para exportação, as privatizações e o desmantelamento do Estado social agravam ainda mais a situação. Os ataques aos direitos trabalhistas e às políticas públicas intensificam esse cenário. É evidente que as profundas marcas da desigualdade social no País possuem dimensões de cor e gênero, com 50,8% das famílias brasileiras sendo chefiadas por mulheres, segundo o Dieese.

A face mais visível da desigualdade reflete-se na forma como as cidades são produzidas, especialmente nas grandes metrópoles. A maioria dos imóveis não tem documentos registrados e as construções desconsideram normas urbanísticas, como códigos de obras, leis de zoneamento e leis de parcelamento do solo. Apesar de termos um complexo arcabouço jurídico avançado e detalhado, há uma desconexão entre as leis e sua aplicação prática, criando um abismo entre a retórica e a realidade, conforme observado por pensadores como Roberto Schwarz, Sérgio Buarque de Holanda e Florestan Fernandes. A falta de supervisão profissional é comum, com apenas 17% das edificações contando com a participação de arquitetos, de acordo com o CAU/BR. A informalidade também se reflete na precariedade de serviços essenciais como transporte, saneamento, saúde e segurança.

Os orçamentos participativos e as políticas inovadoras das décadas de 1980 a 2000 não estão ultrapassados. Recuperar essas ideias seria um bom começo para enfrentar o caos

Essencial à vida, a moradia formal torna-se inatingível fora do mercado privado e das políticas públicas. Neste cenário, muitos habitantes – em algumas cidades a maior parte da população – só têm como alternativa a ocupação ilegal. Paradoxalmente, a vítima torna-se ré (“invasor”, “criminoso”), refletindo um sistema que falha em reconhecer as profundas raízes das desigualdades socioespaciais. As consequências da ocupação irregular de terras são desastrosas, afetando margens de rios, mananciais, encostas e áreas suscetíveis a inundações. Esse mercado imobiliário informal é cada vez mais controlado por grupos armados, que dominam 40% da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, segundo pesquisa do Geni/UFF e Fogo Cruzado–RJ. Essas áreas sofrem com exclusão, pobreza, violência e práticas políticas de clientelismo em diversos níveis de governo.

As últimas eleições municipais evidenciaram o papel do Legislativo na gestão e fragmentação dos orçamentos públicos, revelando um exacerbamento do clientelismo – ou da política do favor –, agora intensificado pelos algoritmos das redes sociais. As forças democráticas e de esquerda, absorvidas pela política institucional, distanciaram-se das organizações locais. Nesse contexto, o desafio é criar novas formas de atuação política, podendo as políticas urbanas do passado recente no Brasil servir como inspiração para essa renovação. Falamos do ciclo das prefeituras populares e democráticas.

Durante as décadas de 1980 e 2000, numerosas prefeituras destacaram-se por implementar políticas inovadoras que buscavam garantir o direito à cidade e à moradia. Focadas em reverter a lógica tradicional dos investimentos públicos, essas gestões foram pioneiras na participação popular e na descentralização administrativa. Esse período foi marcado pelo retorno das eleições diretas para prefeitos das capitais, após o fim da ditadura. Operando principalmente com recursos próprios, essas prefeituras não só ganharam reconhecimento internacional, com muitas práticas premiadas, como também fortaleceram a democracia participativa. Demonstraram que o poder local pode ser um motor eficaz de mudança, superando velhas práticas de clientelismo político. Mostraram também que a dependência de modelos de desenvolvimento importados de países centrais muitas vezes não se adapta às necessidades das cidades dos países do Sul Global.

O conjunto São Francisco, em São Paulo, foi exemplo de habitação popular. À direita, a favela Nossa Senhora Aparecida – Imagem: Robson Martins e Acervo/Ciclo Vicioso

O orçamento participativo destacou-se como prática adotada em mais de 3 mil cidades, incluindo Paris, Lima, Nova York e Maputo. Paralelamente, a mobilidade urbana foi transformada com a criação dos corredores de ônibus conhecidos globalmente como Bus Rapid Transit (BRT), que otimizaram o transporte público em diversas cidades, promovendo eficiência e sustentabilidade. O direito à moradia foi fortalecido pela regularização fundiária e concessão de direito real de uso, garantindo segurança jurídica e inclusão social.

A colaboração entre governo, movimentos de moradia, arquitetos e engenheiros impulsionou mutirões autogeridos e concursos de arquitetura, criando habitações que atendiam às necessidades dos moradores. Essas iniciativas, em contraste com os modelos do regime militar e até mesmo do Minha Casa, Minha Vida, geraram projetos arquitetônicos referenciais até hoje. As prefeituras inovadoras avançaram na gestão pública com a descentralização administrativa e a criação de conselhos populares, aproximando o governo da população. Projetos integrados de transporte, tarifa social, a construção de equipamentos coletivos em áreas de ensino, cultura e lazer (Cieps, Ceus), ações de preservação ambiental, manejo de resíduos e incentivo à agricultura urbana, associados a outras infraestruturas como sacolões e restaurantes populares, demonstravam o impacto das ações locais.

Esse ciclo foi determinante para a eleição de um presidente oriundo da classe operária em um dos países de maior desigualdade social do mundo. Muitas das ações implementadas durante o primeiro governo Lula, em 2003, inspiraram-se nas políticas desenvolvidas durante o ciclo dessas administrações municipais. A criação do Ministério das Cidades e a formulação do programa Fome Zero, além de um extenso arcabouço legal, são exemplos disso.

A partir dos anos 1990, em um contexto de ascensão do neoliberalismo e de políticas de austeridade, o ciclo das prefeituras democráticas passou, porém, por regressão e, pior, teve sua memória histórica apagada, assim como quase todos os episódios que ousaram contrariar as marcas de um país de passado colonial, escravista e dominado por uma elite patrimonialista. Desenvolvido no contexto do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) “Produção da Casa e da Cidade”, associado ao Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (LabHab/FAU–USP), o portal ciclovirtuoso.org compila e disponibiliza documentos históricos que ilustram o referido período. Esse arquivo digital apresenta muitos dos municípios participantes do ciclo de políticas urbanas inovadoras, englobando a maioria das capitais e o Distrito Federal, além de várias cidades de porte médio. Destacaram-se, na Região Norte, Belém e Rio Branco; no Nordeste, Fortaleza, Natal, Teresina e Recife; no Centro-Oeste, Goiânia, Campo Grande e Brasília; no Sudeste, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Vitória; e no Sul, Porto Alegre.

A cidade informal engole a formal. Mais de 16 milhões de brasileiros vivem em favelas e metade da população das metrópoles vive na “ilegalidade”

Mesmo com os avanços e as experiências bem-sucedidas, o maior desafio das gestões nos últimos anos do ciclo virtuoso foi governar, responder às demandas e articular a resistência à crise mundial do Estado de Bem-Estar Social. Resgatar e valorizar essa memória é imprescindível. Esse exercício ajudaria a evitar o hábito recorrente de muitos governos de começar do zero, buscando reinventar a roda, frequentemente acompanhados de promessas espetaculares, mas pouco eficazes e distantes das reais necessidades da população.

A crise internacional que se intensificou a partir de 2014 gerou instabilidade política e ataques ao Estado de Direito, incluindo o impeachment da presidenta ­Dilma Rousseff e a Operação Lava Jato. Esse período viu o fortalecimento do ultraconservadorismo e a centralização do poder, resultando em retrocessos significativos nas políticas sociais, devido à erosão dos princípios democráticos e, apesar de as eleições presidenciais de 2022 terem culminado na derrota de um projeto político contrário às instituições democráticas vigentes, o Brasil continua a enfrentar desafios políticos consideráveis e uma persistente instabilidade marcada pela economia da comunicação e dos algoritmos. A regressão nas cidades brasileiras, onde reside 85% da população, é evidente, afetando profundamente a vida cotidiana da maioria da sociedade.

O ciclo virtuoso não foi um sonho, não foi um projeto de marketing, foi uma realidade vivida, consolidando-se como experiência concreta e transformadora. Resgatar essa memória é trazer esperança à dura realidade dos dias de hoje. Esse processo implica reinventar a participação política e a democracia em uma escala mais próxima. Em um contexto global marcado por mudanças profundas, a reconstrução da democracia brasileira não será um processo rápido e deverá voltar a incluir o protagonismo da democracia local. •

Publicado na edição n° 1343 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘De todos ou de ninguém’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo