Economia
De que é feita nossa soberania?
A crise do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas evidencia fragilidade do Brasil no enfrentamento ao governo Trump


Vez ou outra, a vida nos surpreende com momentos de verdade. A abertura de uma enorme bandeira dos Estados Unidos nas manifestações bolsonaristas em comemoração do dia da Independência (!) foi um desses episódios: a mais sofisticada teoria não teria ilustrado tão bem o projeto da ultradireita para o Brasil tal como ela própria o fez na Avenida Paulista no último domingo.
A extrema-direita brasileira carrega em seu âmago a submissão aos interesses da potência do Norte. No entanto, se o modo vulgar pelo qual esse desejo colonial é vocalizado por apoiadores de Bolsonaro espanta, é importante recordar que o mesmo anelo se percebe frequentemente – com maior sutileza, é claro – na letra de sujeitos bem-educados oriundos das elites econômicas e intelectuais do País. Dado o caráter antinacional de nossas elites, a defesa da soberania no Brasil tornou-se uma tarefa da esquerda e de setores nacionalistas. Nesse sentido, e diante da correta recuperação do termo por Lula e seu governo, cabe refletir sobre as bases que sustentam a soberania nacional. Afinal, o Brasil possui atualmente os fundamentos de longo prazo para afirmar-se contra a ofensiva estadunidense?
Talvez, outro episódio atual, outro momento de verdade, possa iluminar esta reflexão: trata-se da dramática crise que atravessa o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, o CBPF. Uma das mais importantes instituições científicas do País, e certamente o mais relevante centro de pesquisa em Física da América Latina, o CBPF convive com a ameaça de ter que paralisar suas atividades por falta de verbas para despesas básicas com água, luz, limpeza, instrumentação e serviços de escritório.
O Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas foi criado em 1949, momento de intensa politização da sociedade brasileira. Definia-se, então, a cara do Brasil moderno, e os setores de distintos matizes que reivindicavam soberania tomavam a dianteira. Imersos neste contexto, um grupo de cientistas brasileiros treinados nas melhores universidades do mundo e liderados pelo físico José Leite Lopes se convence de que a superação do subdesenvolvimento e da dependência só seria possível caso o país dominasse a ciência e a tecnologia do seu tempo. “Não desejamos somente ser capazes de adquirir os frutos do conhecimento. Queremos que a árvore da ciência e da tecnologia cresça também em nosso solo”, discursou Leite Lopes anos depois, do púlpito da ONU, em Genebra.
Ao criar o CBPF, Leite Lopes e seus jovens colegas, entre eles, Cesar Lattes, Jayme Tiomno e Elisa Frota-Pessoa, buscavam renovar a pesquisa em física no Brasil, mas também sonhavam introduzir, com esse passo, o Brasil na rota que países de ambos os campos da Guerra Fria trilhavam a partir da década de 1950: o investimento massivo, guiado pelo Estado, em pesquisa pura, aplicada e desenvolvimento de novas tecnologias, como o suporte fundamental para da soberania econômica, militar e política.
Com o apoio decisivo do contra-almirante Álvaro Alberto, que anos depois lideraria o programa nuclear brasileiro, e de João Alberto Lins de Barros, veterano da Coluna Prestes e homem de confiança de Vargas, o Centro foi criado e até 1964 seus quadros construíram a reputação internacional da instituição publicando mais de 150 artigos nas mais renomadas revistas científicas, recebendo cientistas importantes de outras latitudes, criando a Escola Latino-Americana de Física, entre outros feitos. Do CBPF saíram os impulsos para a criação do CNPQ, e, mais adiante, do IMPA, do LNCC e do LNLS. O golpe empresarial-militar de 1964 lançou o CBPF em um período de cerceamento de ambições, que só voltam a reconstruir-se com o final da ditadura e a volta de alguns de seus membros fundadores.
Atualmente, o CBPF conta com mais de 80 pesquisadores e 100 alunos de pós-graduação em áreas da Física como altas energias, astropartículas, nanotecnologia, física aplicada à biomedicina, informação quântica, ciência dos materiais, magnetismo e instrumentação científica. Além da pesquisa de nível internacional e do intercâmbio intenso com cientistas de diversas partes do Brasil e mundo, pois a instituição possui equipamentos multiusuários, o CBPF também realiza parte relevante da importação de materiais e equipamentos para instituições de pesquisa do país. Finalmente, o centro cultiva vínculos estreitos com escolas públicas através do projeto Provoc, onde incentiva jovens do ensino médio a seguirem por carreiras científicas.
Todas essas atividades estão paralisadas ou seriamente comprometidas por falta de orçamento. Os projetos de divulgação científica foram adiados; as compras internacionais paralisadas. Também a pesquisa foi afetada com a diminuição de 25% dos funcionários terceirizados, os/as quais, além da limpeza, também participam de atividades preparatórias para experimentos e testes. Os laboratórios multiusuários interromperam reservas para cientistas de outras universidades, afetando a pesquisa em todo o país. Pesquisadores do Centro relatam o uso de computadores pessoais para realização dos projetos, a maioria dos quais só seguem ativos devido a financiamentos oriundos de editais e parcerias individuais. Um corte do fornecimento de energia elétrica poderia danificar aparelhos avaliados em mais de R$ 100 milhões de reais.
Afirmei no início que a situação do CBPF e dos demais institutos de pesquisa vinculados ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação – pois a crise é generalizada – deveria ser considerada um momento de verdade na atual conjuntura. Por um lado, a afirmação – fundamental, repito – da soberania do Brasil perante os EUA demonstra a diferença entre o atual governo e o do ex-presidente condenado Jair Bolsonaro, cujo círculo atua deliberadamente em favor de uma intervenção estrangeira.
Por outro lado, é preciso apontar que, diante da gravidade das ameaças atuais, o país se encontra desarmado para um enfrentamento de maior fôlego às investidas do imperialismo estadunidense. A soberania, definida aqui – de maneira um tanto simples, talvez – como a capacidade de um Estado para ordenar o espaço econômico-político em favor do seu povo, tem como condição fundamental o controle dos meios materiais de tal exercício; meios os quais, no período atual da história, estão ligados indelevelmente ao domínio da ciência e da tecnologia do nosso tempo.
Os dados positivos de crescimento do PIB desde 2023 não nos deveriam desviar do fato de que o Brasil carece atualmente de um projeto científico e tecnológico de longo prazo para o benefício de seu povo, fato que se evidencia ao observarmos a inserção do Brasil na economia mundial. Com exceção da indústria aeroespacial e segmentos de mobilidade elétrica (ambos com elevado conteúdo importado no valor adicionado), o Brasil se relaciona com o resto do mundo exportando produtos baixa ou média-baixa intensidade tecnológica e importando bens de alta e média alta intensidade.
Segundo o IEDI, em 2024 o Brasil apresentou déficit de 123,8 bilhões de dólares em bens de alta e média alta intensidade tecnológica, com recordes negativos no complexo eletrônico, indústria farmacêutica e peças e partes de aeronaves. Em 2024, os bens de alta e média-alta tecnologia somaram 26,7% do total das exportações da indústria de transformação; em 2000, representavam 42,9% do total. Enquanto isso, os produtos de baixa e média-baixa tecnologia apresentaram superávit de 192 bilhões de dólares, com destaque para crescimento de produtos agropecuários, minérios e manufaturas tais como papel e celulose e bens alimentícios.
Alguns exemplos ilustram as consequências das cifras anteriores: o Brasil depende em 90% da importação de insumos farmacológicos ativos (IFAs) para sua indústria farmacêutica; praticamente todos os sistemas de dados utilizados por universidades, empresas públicas, governos federal, estadual e municipal são propriedade de big techs estadunidenses; a indústria nacional de circuitos integrados inexiste (com exceção da CEITEC, ainda muito distante da fronteira tecnológica) e a indústria de bens de capital perde relevância ano a ano. Tal é a situação das últimas duas décadas e sintetiza aquilo que Furtado, Dos Santos e outros definiram como dependência tecnológica.
A capacidade científica e tecnológica do país reflete e, ao mesmo tempo, repercute sobre o atraso produtivo. Mesmo levando em conta a tímida recuperação orçamentária do MCTI durante o governo Lula III, o orçamento executado pelo MCTI em 2024 (12,3 bilhões de reais) foi ainda inferior, em valores constantes, à execução de 2016, momento de profundo ajuste fiscal. Desde 2014, há uma participação cada vez menor do orçamento deste ministério em relação ao PIB. E as regras do Novo Arcabouço Fiscal, como se sabe, tornam improvável uma elevação substantiva do orçamento nos próximos anos.
Os Indicadores Nacionais de Ciência, Tecnologia e Inovação do MCTI mostram que o gasto nacional em pesquisa e desenvolvimento (P&D) como proporção do PIB (1,19%) é historicamente inferior aos países desenvolvidos e muito distante de países que disputam atualmente espaços de liderança na corrida tecnológica. Em número de pesquisadores por mil habitantes, o Brasil fica atrás de todos os países centrais e só supera África do Sul e Índia (que abriga 1,8 bilhão de habitantes e é uma potência nuclear) entre os países mais importantes dos BRICS. Essas cifras se revertem em uma minguada concessão de patentes para o Brasil e um desalento generalizado na comunidade científica nacional, que perde seus melhores talentos para universidades dos Estados Unidos e da Europa.
O Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas foi criado justamente para servir de instrumento à superação da dependência científica e tecnológica que hoje se aprofunda. Sua situação atual, comparada com sua ambição inicial, torna o fato em questão ainda mais paradigmático. A recomposição do orçamento do CBPF e demais institutos do MCTI é urgente e a única medida coerente com o discurso atual do governo. Contudo, para enfrentar os desafios que o convulsionado cenário mundial apresenta ao Brasil, é preciso ir além. A comunidade científica brasileira deve se imiscuir em debates que aparentemente – apenas aparentemente – não guardam relação com seu ofício. Há, por exemplo, evidente relação entre a inaceitável taxa de juros, o Novo Arcabouço Fiscal e a pressão sobre o orçamento em ciência e tecnologia para os próximos anos.
Por fim, a crise global de múltiplas dimensões recoloca a questão que intelectuais como Leite Lopes levantaram lá atrás: qual será o lugar do Brasil no contexto global emergente? E qual o papel da ciência nesta conjuntura? Se, por um lado, nem a ciência nem a tecnologia são os motores da história (e abraçá-las como panaceia seria idealismo), por outro, sem um projeto científico e tecnológico nacional – por meio do qual possamos escolher quais conhecimentos desenvolver e como aplicá-los –, seguiremos vulneráveis às investidas das potências que nos querem eternos fornecedores de matérias-primas e força de trabalho superexplorada.
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