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Opinião

De Altamira a São Paulo, o que está em jogo com as mortes dos pobres?

De Altamira à privatização dos presídios paulistas, há a normalização da barbárie

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*Por Mônica Seixas e Vivi Reis

O medo, o ódio e a insegurança em relação ao futuro estão presentes na vida de grande parte dos brasileiros: o aprofundamento da crise econômica se expressa não apenas no empobrecimento das famílias, mas na desestruturação de vidas que já contavam com muito pouco.

A violência explícita passa a ser uma sombra cada vez mais próxima, nas ruas, nas escolas, e nas casas. Nesse clima de medo, não é incomum o oportunismo de grupos políticos reacionários e populistas, que exploram esses sentimentos da população de forma rasa e eleitoreira, propondo “soluções” simplistas, sanguinárias e completamente destrutivas.

A pauta da Segurança Pública, que se torna cada vez mais prioritária na agenda política e social do Brasil, também passa a ser um simples instrumento de dominação político-ideológica desses grupos reacionários. Com pouco interesse em de fato combater a raiz da violência geram uma profunda crise social que se expressa nas crescentes taxas de homicídios nas cidades e no campo. 

Essa profunda crise social pode ser vista de forma mais incontestável no encarceramento em massa que têm ocorrido nos últimos anos, encarceramento esse que tem como alvo os pretos e periféricos, por serem corpos historicamente submetidos ao controle e punição. Também pode ser vista na  predominância de milícias e facções no comando de presídios e territórios urbanos. Esse processo mostra a falência das políticas públicas de segurança baseadas em ações reativas, militarizadas e repressivas.

Ainda assim, setores conservadores que dominam a política institucional, como o governo Bolsonaro, seguem defendendo a ampliação da austeridade no combate a violência. São os resquícios de um período ditatorial que está longe de ser superado, de uma democracia muito frágil e incompleta que não chegou nas periferias, morros e favelas. Além disso, também é, de forma mais estrutural, fruto dos quase 400 anos de escravidão e massacre que ocorreram em chão brasileiro. Por isso, quem morre e quem enche as cadeias são os pobres e prioritariamente os negros e negras.

O recente massacre ocorrido no Centro de Recuperação de Altamira (CRRALT), no Pará, é um sinal desesperador: o pouco caso com que foi tratado por diversos veículos da grande mídia, o fato de não ter havido  nenhum pronunciamento de conteúdo razoável e oficial do poder público, e o descaso com as famílias dos mortos nos revela um cenário social em que o avanço das políticas de morte seguem firmes. A impressão é que vivemos em um ambiente de normalização da barbárie.

 

Fica óbvio que se a pauta da Segurança Pública fosse realmente prioridade do governo federal, um episódio em que mais de 60 presos são assassinados de forma brutal por uma facção contrária, em poucas horas, dentro de um espaço gerido pelo poder público, teria suscitado debate nacional. Porém o que fica evidente é que o encarceramento representa a negação de direitos, invisibilidade social e aprofundamento de vulnerabilidades.

Desses mais de 60 assassinados, 26 deles presos provisórios (ou seja, não haviam passado por julgamento), nos obrigam a refletir sobre a importância da nossa luta contra a banalização da barbárie, num mundo em que vidas pobres valem cada vez menos.

O filósofo Achille Mbembe nos diz que o mundo contemporâneo é marcado pela necropolítica: criam-se verdadeiros estados de exceção dentro dos países ditos democráticos, em que grandes massas populacionais são jogadas, dentro do imaginário social e também concretamente, no status de “mortas-vivas”. Ou seja, passíveis de serem eliminadas. Criam-se “mundos de morte”, semelhantes aos campos de concentração nazistas e às senzalas coloniais, em que o terror é o elemento dominante.

Para essa operação social ocorrer, o racismo é ferramenta central. Também para o autor, a necropolítica é a forma social mais própria do neoliberalismo. 

O autor não coloca isso à toa. O avanço da política da morte, ou necropolítica, é resultado direto da imposição cada vez mais cruel da agenda neoliberal, que acaba com políticas sociais como saúde, educação e moradia públicas, salva os super ricos da crise econômica, e, no limite, pretende destruir noções de bem comum, coletividade e valorização de todas as vidas. A morte dos “matáveis”, seja pela miséria, seja pelo assassinato, se torna então parte da rotina.

Depois do massacre em Altamira, quatro pessoas morreram no trajeto da transferência para Belém.

Por isso, governos comprometidos com a agenda neoliberal, como Bolsonaro, e como João Dória em São Paulo e Hélder Barbalho no Pará investem em políticas de Segurança Pública reativas, militarizadas e genocidas. O encarceramento em massa é parte central dessa política, ao imputar o status de “matável”, de “morto-vivo”, a um número cada vez maior de pessoas, dos quais 40% sequer foi julgado. 

O caos no sistema prisional, além de servir ao propósito genocida, como testemunhamos em Altamira, também é oportuno para que governos proponham mais uma falsa “solução”: a proposta de privatização dos presídios, tocada por Doria em São Paulo, é mais uma forma de lucrar com a miséria, e uma utilização do necropoder sobre as pessoas matáveis. É a tentativa de garantir um sistema privatizado que seja funcional para o momento de crise econômica que vivemos, onde há necessidade de criar novos espaços para o lucro e acumulação para a elite econômica nacional e internacional. João Doria busca garantir o lucro de seus parceiros empresários (do grupo LIDE) às custas das vidas dos nossos, do futuro da juventude preta. Não há nenhuma sinalização no sentido de melhoria das condições dos presídios: a justificativa é livrar o Estado de um “gasto desnecessário”.

O prognóstico é óbvio: privatiza-se para que o poder privado consiga aumentar os seus lucros, o que significa buscar mais vagas e buscar mais presos. Privatização do sistema prisional está acompanhada de um projeto de aumento do número de pessoas que compõem a população prisional, ou seja, a ampliação do encarceramento da negritude que hoje é a maioria dos desempregados, dos pobres, da mão de obra de baixa qualificação. O aumento do encarceramento de mulheres também está evidente no projeto. Já vem ocorrendo nos últimos anos: a quantidade de mulheres presas cresceu 700% de 2000 a 2016, majoritariamente jovens negras (INFOPEN, 2016).

É preciso que nós, como esquerda atuantes nos movimentos sociais, nos parlamentos e nas ruas, tomemos como tarefa central resistir às tentativas de imposição da barbárie. Devemos, em alto e bom som, dizer não ao encarceramento da juventude preta e periférica, não às políticas neoliberais de morte. No Pará, o governador Helder Barbalho fala em “compromisso” para evitar mais massacres nos presídios, mas não apresenta soluções concretas e, sempre que pode, afirma seu alinhamento político com Bolsonaro, inclusive defendendo intervenção militar como alternativa para Segurança Pública.

Enquanto isso, o Pará ocupa o 5° lugar dentre os Estados com maior número de mortes, o que reflete um histórico não superado de políticas excludentes implementadas pelos governantes junto aos latifundiários, mineradoras e agronegócio. A tragédia de Altamira, por exemplo, é fruto também do crescimento populacional desenfreado sem condições adequadas de acesso aos serviços de saúde, educação, moradia, alimentação e lazer em razão da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, herança do Governo Dilma.

Além disso, a grande disputa pelo controle e comando do crime organizado coloca na mira os corpos negros. Associado a isso, o Governador dissemina discurso de criminalização da pobreza e uso da Força Nacional como estratégia de controle sobre a periferia sob a máscara de combate a violência.

Em São Paulo, não difere muito, pois João Doria articula num mesmo programa a garantia de mais contratos a seus amigos empresários com o avanço do extermínio a jovens pobres e negros. Devemos, de forma unificada, em todos os cantos do país, apresentar que a solução para a segurança pública passa pelo fortalecimento de políticas públicas, de educação, saúde, cultura, moradia, lazer. Apresentar que apenas a aliança com os debaixo e dos debaixo pode fazer frente à sanha pelo lucro, que só nos mata e encarcera.

* Mônica Seixas é co-deputada estadual pela Bancada Ativista em São Paulo. Militante negra, feminista e ambientalista. Vivi Reis é trabalhadora da saúde, feminista negra e ativista da luta dos povos originários. Primeira suplente de deputada federal pelo Pará. 

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