

Opinião
Da Rússia, com amor
Valdai poderia inspirar o Brasil na criação de um fórum global para discussão aprofundada dos problemas da humanidade


O mundo atravessa uma quadra de extraordinária complexidade e elevados riscos. Estamos ameaçados por perigos de guerra nuclear, por problemas sociais e demográficos, pela destruição ambiental e pelos impactos incalculáveis do progresso tecnológico acelerado, em especial da Inteligência Artificial. Faz-se necessária, mais que nunca, uma discussão verdadeiramente global, não excludente, da qual possam participar todas as nações.
Escrevo da Rússia desta vez. Vim para cá para participar, em Sochi, de um evento de grande importância para os russos: o encontro anual do Clube Valdai, um fórum de discussão de assuntos de interesse mundial.
Embora não seja um fórum oficial, o Clube Valdai é muito prestigiado pelo governo russo. No encontro deste ano, assim como nos anteriores, tivemos a presença de várias autoridades russas, entre elas o ministro Sergei Lavrov, das Relações Exteriores, e o próprio presidente Putin, que passou mais de quatro horas debatendo com os 140 participantes de 40 países, incluindo intelectuais, diplomatas, economistas e acadêmicos de quase todas as partes do mundo.
Em razão da desinformação que prevalece no Brasil e nos países desenvolvidos, o Clube Valdai é pouco conhecido fora da Rússia. Mal comparando, poderia dizer que é uma espécie de Davos russo. Como Davos, é uma instância onde pessoas de todo o mundo discutem questões internacionais candentes. Davos, entretanto, é palco para as elites ocidentais e seus vassalos de países em desenvolvimento. Já em Valdai, o tom é dado pelos russos e pelos participantes do exterior, a grande maioria dos quais de países do Sul Global. A presença de europeus e americanos é bem reduzida.
Não era essa a intenção dos criadores de Valdai, quando o clube foi estabelecido há pouco mais de 20 anos. A ideia original era criar as condições para um diálogo entre a Rússia e o Ocidente. Nos últimos anos, esse diálogo foi interrompido. Os poucos ocidentais que comparecem correm riscos profissionais. A Rússia é vista como tóxica pelo Ocidente e como tóxicos, também, por extensão, são vistos aqueles que aceitam convites para vir a Valdai.
Entre os russos com quem dialoguei em Sochi, quero destacar o professor Sergey Karaganov, teórico de relações internacionais celebrado na Rússia e um dos criadores do Clube Valdai. Karaganov manifestou a sua decepção com a falta de diálogo com o Ocidente e fez uma sugestão interessante, que é, na verdade, o principal tema deste artigo.
Os problemas principais da humanidade – sociais, econômicos, tecnológicos, demográficos e ambientais – demandam soluções globais, baseadas num diálogo amplo, do qual ninguém pode ser excluído. O Ocidente, raivoso e em declínio relativo, não pode ficar de fora. “Os ocidentais estão perdendo”, disse Karaganov, “mas são uma parte nossa.” Observou também que uma nova ordem mundial tem de estar centrada não no indivíduo, como no Ocidente, mas no humano, isto é, no substrato essencial que nos une a todos.
Trazer os americanos e europeus para um diálogo franco é uma tarefa difícil, para dizer o mínimo. Autossuficiência e arrogância são traços enraizados nos ocidentais. Ainda mais difícil, provavelmente impossível, é trazer esse povo para um fórum sediado na Rússia, como mostra a experiência de Valdai, ou para qualquer fórum que seja patrocinado pela China ou outros países vistos como hostis pelo Ocidente.
Aí é que entraria o Brasil. Não poderíamos construir um novo fórum, de natureza global, que incluísse todos os países, para uma discussão aprofundada dos problemas da humanidade? Não poderia o Brasil liderar esse projeto? Algo como Valdai, mas sem a marca russa que impede a participação em grande escala de americanos e europeus.
O Brasil tem características que podem ajudá-lo a cumprir essa tarefa. Por exemplo, é um país que tem entrada praticamente no mundo todo, sendo bem recebido em qualquer parte. E conta, também, com Lula, um líder de porte mundial, experimentado e verdadeiramente interessado em manter diálogo franco e aberto com todas as nações, próximas e distantes, grandes e pequenas, ricas ou pobres.
E não poderia o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), estabelecido pelos BRICS em Xangai, ter um papel no apoio à formação e desenvolvimento desse fórum? O NBD, mais conhecido como Banco dos BRICS, é presidido atualmente pela ex-presidenta Dilma Rousseff. Fundado em 2015, é a principal iniciativa prática dos BRICS. Conta com amplos recursos e poderia ser um dos financiadores do fórum.
Talvez o governo brasileiro não tenha, neste momento, vontade e tempo para uma iniciativa internacional de grande porte. Reconheço que a ideia pode parecer irrealista. Mas, convenhamos, não é verdade que nada de importante no mundo se faz sem uma certa dose de utopia? •
Publicado na edição n° 1384 de CartaCapital, em 22 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Da Rússia, com amor’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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