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Opinião

Maurício Gattaz: Da gripe espanhola à Covid-19

Cento e dois anos depois, tudo se repete

Crédito: NIAID Crédito: NIAID
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Por Mauricio Daniel Gattaz*

1918. Nos últimos momentos da primeira Guerra Mundial, o ano foi atormentado por um agente infeccioso desconhecido. Aportou em Kansas, nos Estados Unidos, nos campos militares e foi se espalhando pela Europa, devido ao grande movimento de transporte de tropas das nações aliadas, e a seguir dirigiu-se para outros continentes. França, Inglaterra e Alemanha foram os primeiros alvos.

No entanto, a infecção foi facilmente saindo das grandes metrópoles e pegando os caminhos dos interiores, das selvas e dos mais longínquos lugares do mundo. Sua ganância e volúpia era insaciável, ao invadir milhões de corpos, destruindo-os com falta de ar, levando-os à uma coloração azulada devido à falta de oxigenação, por nós médicos chamado de cianose.

Era uma doença ainda estranha, embora muito lembrasse outras gripes, porém letal. Acumulava mortos nas cidades e nas vilas. Números conservadores do passado falavam em 20 milhões de mortos. Estudiosos das últimas décadas falam em 100 milhões de mortos, ou seja, para uma população mundial da época de 1,8 bilhão de pessoas, cerca de 5 % morreram. Transpondo para uma população de 7,8 bilhões em nossos dias, corresponderia a cerca de 350 milhões de mortos. Passou-se toda a epidemia sem se saber qual era o agente infeccioso.

Os grandes pesquisadores da Europa e dos Estados Unidos acreditavam que era uma doença causada por uma bactéria, – bacilo influenza -, isolada dos órgãos de pessoas que haviam morrido. Na realidade, não era o agente causal, mas infecção bacteriana secundária. Vários laboratórios não conseguiam isolar esta bactéria, o que os classificava como de má qualidade. Apesar dos cientistas anunciarem vários métodos para recuperar a tal “bactéria”, alguns pesquisadores insistiam em não conseguir isolá-la, desafiando o conhecimento vigente. Posteriormente, em 1930, viu-se se tratar de um vírus: a influenza A (H1N1).

A gripe chegou na Espanha, que estava envolvida na guerra civil, sendo o único pais europeu que não havia entrado na primeira guerra mundial. Por possuir uma imprensa mais livre, não censurada pelo Estado – ao contrário de outros países que, mergulhados na grande guerra, eram impedidos de veicular qualquer notícia que desanimasse o moral das tropas , a Espanha acabou “levando a fama” e a gripe foi então chamada de “gripe espanhola”.

Mas lá estavam também os políticos e os profissionais da saúde, abraçando o negacionismo e o empirismo. Assim diziam: “Esta é uma forma leve de gripe, não trará problemas maiores, há muito exagero dos profissionais e, afinal, temos bons tratamentos baseados em experiências pessoais, que certamente levam à cura”. Com tal certeza, foram prescritos vários tratamentos, alguns publicados em revistas médicas.

Como nos conta John M. Barry, em seu livro “A grande epidemia”:

Um certo médico, ao evocar a lógica, afirmou que, na medida em que falta oxigênio nos pulmões, nada seria mais óbvio que injetar água oxigenada endovenoso, com objetivo de levar oxigênio aos pulmões. Vários morreram, mas os que sobreviveram, segundo este médico, só estariam vivos em decorrência do procedimento.

Havia outros que defendiam a lavagem intestinal com leite morno duas vezes ao dia, para cada ano de idade. Só restava torcer para o paciente ser jovem.

Emplastro de mostarda colocado sobre a pele provocava bolhas, estas eram puncionadas e a seguir infiltradas com estricnina, cafeína e morfina. O resultado era excelente em prevenir a pneumonia.

Homeopatas afirmavam que a taxa de mortalidade entre os alopatas era de 28,2%, enquanto que com medicações à base da erva gisemium, a mortalidade era de apenas 1,05%.

Certo médico publicou na conceituada revista da Associação Médica Americana (JAMA) que “a infecção foi 100% evitada com uma terapia estimulante de produção de muco, através de vários irritantes que eram inalados, impedindo que qualquer patógeno se ligasse à mucosa do pulmão”.

Outro médico da Filadélfia publicou na mesma revista que a cura da doença estava em tornar o corpo mais alcalino através de citrato de potássio e bicarbonato de sódio, o que impediria a proliferação do patógeno, mas ainda advertia: “Jamais usem acido acetilsalicílico, pois antagoniza o beneficio”. Seus resultados eram excelentes, assim proclamava, sem deixar de lado o quinino defendido por muitos como a solução da gripe.

A sociedade sempre clama por soluções rápidas para os problemas. Neste contexto, surgem mais magias do que boa ciência.

Cento e dois anos depois, tudo se repete: negacionismo minimizando a pandemia, tornando-a politizada, acusando a Organização Mundial da Saúde de ser vendida aos interesses do mundo comunista, dentre outras ideias.

As magias são exercidas sem fim, em uma total falta de compromisso com a ciência. A experiência pessoal vale mais que os trabalhos científicos. Passamos as últimas décadas aprendendo e ensinando aos novos médicos a necessidade de se fazer uma medicina baseada em evidências e não em experiência pessoal. Em uma infecção onde cerca de 90% evolui bem, até salada de fruta pode alcançar o posto de sucesso terapêutico.

Assim é que Ivermectina, Nitazoxanida e mais de 70 outros compostos são defendidos, a despeito da ausência de comprovação cientifica e, no que diz respeito à Cloroquina, com sólidos trabalhos desautorizando o seu uso.

Não é de se imaginar que alguém que tenha se entregado um dia aos braços de Esculápio, com juramento hipocrático, e que tenha em seu coração o sincero desejo de ajudar a salvar vidas, voluntariamente queira defender o mal para o próximo. A diferença entre os médicos está nos pilares da crença do que é mais importante: a experiência pessoal ou a medicina baseada em evidências científicas.

O valor da experiência profissional é inquestionável, desde que exercida sobre as constatações da ciência.

Nunca se viu na história de qualquer doença infecciosa a rapidez com que foi identificado o agente causal (SARS-COV-2), o desenvolvimento de métodos diagnósticos, a compreensão da fisiopatologia da doença que leva às melhores formas terapêuticas, através de drogas testadas com estudos bem conduzidos, a adequação dos cuidados intensivos customizados à doença COVID 19 e, em paralelo, o desenvolvimento de uma vacina na qual depositamos confiança e grande esperança. E tudo isso em poucos meses.

A ciência médica merece o reconhecimento da sociedade, não somente pelas pesquisas, mas também pela dedicação de seus profissionais, que deram suas próprias vidas por seus pacientes.

Dedico aqui meu respeito àqueles que se dedicam com amor e responsabilidade ao paciente e que, ao mesmo tempo, se curvam às evidencias de uma boa ciência.

*Mauricio Daniel Gattaz é doutor em emergências clínicas pela FMUSP e médico do Hospital Sírio Libanês-SP

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