Paulo Nogueira Batista Jr.

paulonogueira@cartacapital.com.br

Economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor-executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países

Opinião

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Da China, com inveja

O país tem bilionários e empresários privados poderosos, mas não existe espaço para eles dominarem as políticas públicas

Da China, com inveja
Da China, com inveja
O presidente da China Xi Jinping. Foto: Ken Ishii / POOL / AFP
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Escrevo da China, desta vez – e com inveja. Há dois tipos de inveja. A maligna, que é a dos EUA e da Europa, leva-os a tentar barrar o progresso da China o tempo todo. A benigna admira esse progresso e quer, dentro do possível, e mutatis mutandi, aprender com os chineses e incorporar elementos do modelo que eles vêm seguindo.

Os chineses aprenderam com a experiência latino-americana, infelizmente de forma negativa. Ou seja, observando nossos erros estratégicos, viram o que não fazer. Se pudesse resumir a questão em uma frase, diria: a China, ao contrário da América Latina, não seguiu o Consenso de Washington e a onda neoliberal. Pensou por conta própria e construiu, com grande sucesso as suas próprias soluções, adaptadas às circunstâncias nacionais. Copiou quando conveniente, inovou sempre que necessário.

No entanto, a admiração pela performance da China não deve nos impedir de ver as dificuldades que o país enfrenta. Uma delas é a desaceleração da economia, decorrente de certa perda de dinamismo das exportações e do investimento. O protecionismo contra a China cresceu, estreitando mercados importantes, nos Estados Unidos e na Europa principalmente. Em alguns setores da economia chinesa, notadamente no imobiliário, houve investimentos em excesso, resultando em capacidade ociosa. Essa desaceleração da economia cobra o seu preço em termos de ­desemprego. A alta taxa de desemprego entre os jovens, por exemplo, constitui um problema social de primeira ordem.

Mas fato é que o modelo econômico chinês tem sido extraordinariamente bem-sucedido. Como caracterizá-lo de forma sintética? Talvez começando pelo que ele não é. Não se trata de uma economia de mercado pura e simples, ou seja, não é um sistema capitalista clássico ou tradicional. Não cabe nem mesmo designá-lo como “capitalismo de Estado”, como se faz com frequência nos meios ocidentais, tanto acadêmicos como jornalísticos. O Estado tem presença tão avassaladora na economia e na sociedade que essa expressão se revela enganosa.

Também está claro que o modelo chinês iniciado por Deng Xiao Ping, em 1979, é bem diferente dos modelos soviéticos e chineses do tempo da economia centralmente planificada. O que se buscou na China foi reestruturar a economia, abrindo espaço para o mercado e o setor privado, sem repetir, porém, os erros cometidos por Mikhail Gorbachev, nos anos 1980, com a Perestroika (reestruturação econômica) e a Glasnost (liberalização política).

O que fez a China, com base em uma avaliação cuidadosa da trajetória da União Soviética na sua década final e da Rússia nos anos 1990? Duas coisas, basicamente. Primeira: a Perestroika chinesa foi muito mais cautelosa e gradual. Não houve, como na Rússia, tratamento de choque na economia, privatizações em massa e liberalização abrupta. A abertura econômica foi feita passo a passo, sem desmontar as estruturas estatais e mantendo o controle sobre os setores estratégicos da economia. Segunda coisa: não houve Glasnost na China. O Partido Comunista Chinês permanece como partido único, todo-poderoso, com grande influência na sociedade e na economia. Existem bilionários e empresários privados poderosos, mas na China eles não se criam. Eles não têm papel político e não se lhes permite dominar as políticas públicas. Um cenário totalmente diferente do que se vê, por exemplo, nos Estados Unidos, onde os donos do dinheiro são donos do poder, convertendo a chamada democracia em uma plutocracia (o governo dos endinheirados).

Para começar a entender o modelo chinês, é preciso dar voz aos próprios chineses. Eles caracterizam o seu modelo como “socialismo com características chinesas”. Usam sintomaticamente o termo “socialismo” no lugar do “comunismo” soviético ou maoísta. E por que dizem “com características chinesas”? É que aqui as forças de mercado têm grande peso, mas operam dentro de um quadro estritamente controlado pelo Estado e pelas agências e instituições estatais.

Por falta de espaço, dou apenas um exemplo (uma versão mais completa deste artigo pode ser encontrada na ­CartaCapital online). O sistema bancário da China é quase totalmente dominado por bancos estatais. Aqui não existem Bradescos, Itaús ou Santanders. Os chineses não conhecem nem querem conhecer esse tipo de instituição. O setor bancário é estratégico do ponto de vista macroeconômico e sempre ficou sob domínio de bancos públicos.

Por esses e muitos outros motivos, precisamos estudar mais a China e aumentar as nossas interações com os chineses. Vale o esforço de superar as barreiras linguísticas, culturais e geográficas. Sem cair na imitação servil, levando sempre em conta as nossas condições históricas e políticas, podemos aprender muito com eles. •

Publicado na edição n° 1388 de CartaCapital, em 19 de novembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Da China, com inveja’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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