

Opinião
Cruel hipocrisia
Moralistas acrescentam, ao drama de quem não pode levar a termo uma gravidez, uma carga de culpa que essas pessoas não merecem carregar


O psicanalista Jacques Lacan certa vez escreveu que a pior forma de se praticar um mal é sob a alegação de que ele é feito em nome do bem. “Trata-se do bem de quem mesmo?”, indagou o genial provocador. Lembrei-me dessa passagem ao evocar a perseguição cruel que a tenebrosa ministra dos Direitos Humanos de Bolsonaro empreendeu ao tentar impedir o aborto legal em uma criança de 10 anos de idade. A menina havia engravidado em decorrência de um estupro sofrido nas mãos de algum familiar “cristão”. Evangélica, Damares Alves achava-se imbuída da missão divina de salvar uma vida humana. A do embrião, claro. Nem lhe passou pela cabeça defender a mãe, que, por ser muito jovem, correria o risco de morrer no parto.
Já escrevi em defesa da descriminalização do aborto no ensaio “Hipocrisia”, incluído no livro Tempo Esquisito, que reúne textos escritos durante a pandemia de Covid-19. Nesta coluna, espero avançar um pouco em meus argumentos, não a favor do aborto, e sim das gestantes que sentem premência em interromper a gravidez. Que mulher se sente feliz ou realizada ao interromper uma vida, por mais minúscula que seja?
Estou bem acompanhada na tentativa de evitar que essas mulheres (ou meninas) sejam criminalizadas por sua escolha. Em primeiro lugar, porque esta não é uma escolha leviana. Implica conflito, culpa, sofrimento. Em muitos casos, a mulher deseja a criança, mas decide interromper a gravidez com tristeza por não ter condições materiais ou físicas – caso de mães acometidas por doenças graves que possam contaminar o bebê no parto.
Para enfrentar o voluntarismo da intrépida ex-ministra, recorro à escritora Simone Weil, francesa de origem judaica, que conseguiu aprovar na Assembleia Nacional da França, em 1974, uma lei que tornava o aborto um procedimento médico como tantos outros, dentro da legalidade. São as mulheres que arcam com as consequências de uma gravidez indesejada, observou a então ministra da Saúde. Naquele ano, cerca de 300 mil mulheres francesas procuraram clínicas – com frequência, clandestinas – para interromper a gestação. Os riscos à saúde e de serem presas pela ilegalidade do ato também recaíam apenas sobre as mulheres, com raras exceções.
Moralistas como a ex-ministra Damares Alves acrescentam, ao drama de quem não pode levar a termo uma gravidez, uma carga de culpa que essas pessoas não merecem carregar. Abortar já é, ao mesmo tempo, um ato necessário para elas e um castigo. Observo que o drama da decisão a favor ou contra a prática de um aborto pouco afeta a maioria dos homens. Quantas mulheres decidem interromper a gravidez pressionadas por parceiros? Os machistas argumentam que o ônus de impedir a gravidez cabe exclusivamente àquela que gesta o embrião, mas quantos desses imploram para não usar preservativos, a fim de não comprometer o ápice do prazer sexual? Quantos deles traem a parceira tirando o preservativo durante o ato sexual? E quantos desses bravos companheiros não caem fora, fugindo do teste de DNA para não ter de pagar a pensão alimentícia para a criança?
“Defesa da vida”
Por fim, ressalto que as Damares e suas comadres evangélicas enchem a boca para dizer que seu fanatismo contra o aborto é motivado pelo ideal de defender a vida. O argumento é estúpido ou cínico. Na dúvida, fico com as duas opções. Sim, é verdade que uma célula recém-fecundada sempre é uma vida. Mas, se esse argumento for levado às últimas consequências, devemos considerar que as mulheres, pelo simples fato de que menstruam mensalmente, são assassinas de embriões. E todas sabemos que não somos.
Se a sociedade considerasse todo embrião abortado, por causas naturais ou artificiais, como uma vida humana, seria de se esperar que homenageassem esse microdespojo com os mesmos ritos com que enterram, ou cremam, todos os mortos que tenham um corpo similar ao nosso. Só que isso não acontece. Mesmo as famílias mais comprometidas com alguma religião que proíba o aborto sabem que, no caso da perda de um óvulo fecundado, não serão encomendadas cerimônias equivalentes às que dedicamos às pessoas levadas pela morte. Essas pessoas tanto podem ser recém-nascidas quanto da terceira idade. Serão pranteadas e homenageadas, enterradas ou cremadas com homenagens e prantos.
A mulher que viu interromper-se seu sonho de maternidade logo nos primeiros dias de uma gestação haverá de entristecer-se. Saudades só sentirá de suas próprias fantasias e expectativas otimistas. Terá perdido um sonho, um projeto, mas (ainda) não um filho. •
Publicado na edição n° 1289 de CartaCapital, em 13 de dezembro de 2023.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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