Crônica: Viver agora é fazer perguntas

Vai ter ou não vai ter impeachment? Vamos voltar à Paulista de camisa vermelha e bandeira em punho?

Que horas são? Preciso passar álcool gel nas minhas Havaianas antes de colocar os pés no chão (Foto: iStock)

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Abro os olhos devagar e antes de sair da cama me pergunto: hoje é sábado, será que vai dar pra ir na Praça John Lennon ver como está o abacateiro que lá plantei? Esfrego o rosto, abraço o travesseiro e continuo perguntando: será que lá fora o sol já raiou ou as nuvens de chumbo boiam sobre a cidade, como no final da tarde de ontem?

Será que minhas máscaras estão todas lavadas, higienizadas e secas, dependuradas no varal que fiz especialmente para elas naquele abril despedaçado? O Lysoform spray acabou? Nessa casa ainda tem sabão de coco em pedra para lavar as frutas e os legumes que o sacolão prometeu entregar hoje?

AstraZeneca, Coronavac, Jansen, Sputnik, que vacina vão injetar um dia no meu braço esquerdo? Será que a minha sogra de 101 anos já se vacinou? Minha cabeça são só perguntas: quando será que vou poder voltar um dia a Paris,
entrar naquela livraria da Rue Mouftard e comprar o livro novo do Eri De Lucca?

Voltarei a Barcelona para passar uma tarde inteira na Altaïr viajando pelo mundo de Blaise Cendrars, Jack Kerouac, Jack London e Joseph Conrad? O celular me acorda, tá na hora! Será que minha filha volta a dar aula presencial no Equipe segunda-feira que vem?

Será que vou entrar novamente no ônibus Vila Iório, passar meu cartão de idoso, sentar na janela e fotografar a cidade? Tomarei um dia um café e depois um copinho de água mineral na Cristallo, acompanhado de uma coxinha de catupiry, com Geórgia na minha mente? Um dia vou voltar a descer a São Gualter e parar no St. Marche para comprar umas latinhas de Natu? Porei eu os pés novamente em Istambul para tomar um suco de romã feito na hora numa calçada da cidade velha?


O Instituto Moreira Salles vai reabrir que dia? Minha filha vai trazer a Jacobin número 2 para mim hoje? Já saiu a Piauí de fevereiro? Pousarei novamente no Aeroporto Tom Jobim? Que dia os telejornais vão deixar de mostrar todas as noites aqueles vidrinhos desfilando nas esteiras? Que dia não veremos mais aquelas imagens fora de foco de pessoas agonizando nos leitos das UTIs de Manaus, sem oxigênio? Vou voltar a andar de elevador? Vou abraçar meus amigos e minhas amigas? Vou preparar aquele cuscuz marroquino para trinta pessoas aqui na nossa casa?

Quando o suplemento Na Quarentena, do Estadão, vai voltar a ser Caderno 2? Será que o Guia da Folha volta numa
dessa sextas-feiras? Que dia o Alan Severiano não vai mais aparecer no Jornal Nacional informando o número de mortos nas últimas 24 horas?

Vai ter ou não vai ter impeachment? Vamos voltar à Paulista de camisa vermelha e bandeira em punho?

Vamos comer aquela língua com purê no Le Jazz? Será que um dia vou dizer no interfone pode subir quando o porteiro anunciar a chegada dos meus amigos? Será que a Olga vai voltar da Grécia, a Annamaria de
Floripa e a Carol de Londres? Voltarei a Tóquio para comer um Kit-Kat de wasabi? Voltarei a Florença para tomar uma latinha de San Pelegrino de figo?

Ou a Roma para beber uma Fanta Fiori di Sambuco? Voltarei a Cunha para comprar cerâmicas e a Gonçalves para comprar a pimenta mais ardida do mundo? Que horas são? Preciso passar álcool gel nas minhas Havaianas antes de colocar os pés no chão.

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