Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Crônica: Fragmentos de um confinamento sem fim

Andei bisbilhotando prateleiras que não via há muito tempo e pensando sobre como era ser jovem em 1968

Foto: Dênio SImões/Agência Brasília Foto: Dênio SImões/Agência Brasília
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Há seis meses estou aqui matutando como arrumar todos esses livros na biblioteca. Já pensei em tudo. Tirar um por um, espanar, catalogar. Já pensei em separar por assunto, por ordem alfabética do autor, ordem alfabética do título. Já pensei até em eliminar alguns, doar, encadernar outros, os estropiados indispensáveis. Há seis meses penso nisso. Só penso, nunca coloquei a mão na massa.

Andei bisbilhotando prateleiras que não via há muito tempo. Achei a primeira edição de Fazenda Modelo, do Chico, lá dos anos 1970. Achei o primeiro livro que li, Voo Noturno – vôo ainda com acento circunflexo – de Antoine de Saint-Exupéry, já quase desmanchando as páginas. Achei o Miséria da Filosofia, de Karl Marx, que tantas histórias guardam, motivo de crônicas e palestras Brasil afora. A coleção Encanto Radical, que começou com o Feliz Ano Velho, do Marcelo Rubens Paiva, está toda espalhada: Morangos Mofados, do Caio Fernando Abreu, ao lado de Um Café para Sócrates, de Marc Sautet. O que Dentes ao Sol, de Ignácio de Loyola Brandão, está fazendo agarradinho ao lado dos poemas de T.S. Eliot? Já pensei em pagar uma bibliotecária pra por ordem no galinheiro. Só pensei. De vez em quando fecho os olhos e passo a mão num livro aleatório, o primeiro que me vem à vista: Ontem à noite foi Soltando os Cachorros, de Adélia Prado. Comecei a ler: Quarenta anos é demais pra uma mulher. Prefiro quarenta e dois. O Papa tá passando pito nos jesuítas; plantei um pé de samambaia chorona que não vai pra frente de jeito nenhum. Galinho garnizé é galinho à toa, atrevimento empenado. E fui lendo, e fui lendo e pensei com os meus botões: pra quê uma biblioteca organizada?

Ser jovem em 1968 foi uma das experiências mais fascinantes. Além de ser cabeludo, usar tamancos suecos, calça vermelha e casaco de general, tínhamos mil ideias na cabeça. Viver em comunidade, viver sem dinheiro, viver de amor. Viver como passarinho, andar meio desligado, não sentir os pés no chão. Líamos Erich von Daniken na certeza de que eram os deuses astronautas. Sonhávamos com Macondo ao mesmo tempo que com a guerrilha urbana, suburbana e rural. Um exemplar do Voz Operária nas mãos valia ouro, mais valia que qualquer outro jornal. Decifrávamos a guerrilha de Marighela em fascículos proibidos, guardados segredos dentro de uma caixa de papelão do extrato de tomate marca Peixe. Curtíamos o barato de ver Janis Joplin no palco e Jimi Hendrix incendiando uma guitarra. O som de Spanish Castle Magic ia e voltava enquanto o sonho era mesmo caminhar contra o vento, sem lenço, sem documento no sol de quase dezembro. Queríamos debulhar o trigo, recolher cada bago do trigo, plantar batatas e colher frutos. A gente não precisava de muito dinheiro, graças à Deus. Tínhamos na cabeça uma fantástica fábrica de ideias, objetivo dar uma facada certeira no capitalismo, olha o sangue, olha o sangue no chão! Mas não soubemos por ordem nisso tudo. Na parede do meu quarto, atrás da porta, escrevi em letras miúdas com uma caneta Pilot: O último capitalista que vamos dependurar será aquele que nos vendeu a corda. Entre parentes, rabisquei: Karl Marx.

Plantar uma árvore, já plantei. Um chorão que semeei no quintal da Rua Rio Verde e que virou uma frondosa árvore. Plantei também uma ameixeira na varanda do apartamento na Avenida Higienópolis e que está lá até hoje, vejo quando passo. E plantei um abacateiro na varanda do meu apartamento aqui na Lapa. Já está com mais de um metro de comprimento e minha mulher quer que eu tire ele de lá porque, com algumas folhas amarelas, ela acha que ele, no vaso, não cresce mais que isso. Tento resistir, argumentando que o abacateiro será sempre meu parceiro solitário nesse itinerário da leveza pelo ar. Ter um filho, já tive, quatro! Todos adultos, crescidos, os meninos estão todos sãos. Dois nasceram em Paris, dois em São Paulo. Um menino, três meninas, todos parecidos, prontos para enfrentar a vida.

Escrever um livro, já escrevi, nove! E estou escrevendo mais um. Minha obra ainda está incompleta. Trato do meu novo livro como tratava daquele chorão na Rio Verde: aguando todos os dias um pouquinho para não deixar a terra muito seca. Trato como tratava dos meus filhos, dando papinha, trocando fralda, colocando panos frios na testa nas madrugadas de febre, vendo o VHS de Óia a Onça cinquenta vezes e ensinando o que foram as Capitanias Hereditárias.

Acabo de completar setenta anos, mas, como dizem que a vida começa aos quarenta, sinto-me feliz com os meus trinta anos, com minhas árvores, meus filhos, meus livros.

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