Opinião

Crônica de ‘foi só um tiro no pé que com o tempo gangrenou’

Hoje, enquanto escrevo olhando o quadro que retratava aquela última araucária, penso em todos vocês, alguns já numa saudade impossível de interromper

Foto: Wikimedia Commons
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O quadro está até hoje exposto em uma parede de minha casa. Não é feio ou mal pintado. Tem origem numa galhofa de que amigos do Paraná me pregaram. A paisagem de um extenso pasto onde restava única árvore de um só tronco, não muito grosso, e no alto uma bem formatada taça de folhas verde-escuras, a copa.

Uma Araucária (Araucaria Angustifolia) predominante nos estados da região Sul do Brasil, mas também com ocorrência no leste e no sul dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro e no sul de Minas Gerais (Serra da Mantiqueira).

Creio que o quadro me foi presenteado entre os anos 1980/90, quando me despedia de uma empresa de fertilizantes para assumir cargo mais alto em concorrente.

De meu lado, despertavam fortes conceitos ambientalistas que incluíam a desnecessidade de desmatamentos tão intensos para plantio de lavouras, que pudessem comprometer, no futuro, a diversidade de nossos biomas. Do lado deles, os excelentes resultados de produção e produtividade de grãos no Sul, sobretudo de milho e soja, os faziam olhar de forma cúpida as largas extensões de terras baratas do Centro-Oeste.

A galhofa pictórica pegava minha alma esquerdista de forma direta. A dedicatória era forte, com a assinatura de todos no verso:

“Rui, nossa eterna amizade e gratidão. Como homenagem e admiração à sua luta, deixamos a última araucária que sobrou no Paraná pra você derrubar. O resto já foi tudo. Agora, assista-nos subir e abrir a nova fronteira agrícola. Não esquece de mandar o adubo. Aceitamos sua nova marca”.

Ríamos todos, mesmo eu. Afinal, em meio à alegria, piadas de amigos de fé (?), os piás em volta crescendo, o fogo assando a mais perfeita costela bovina, um porco no rolete ou uma paleta de ovelha. Folhas em profusão, endívias (radicchios), alfaces, almeirões, pepinos e tomates referenciavam o paulista ali presente, todas avinagradas com mostos da serra gaúcha.

As muiés entravam nas pilhérias e nos afazeres. Uso o termo nordestino, pois nascemos todos no mais lindo e receptivo país do mundo, que foi capaz de, durante quatro anos, sobreviver a um fake-mito.

Nós louvávamos nossas santas de fé. Mães, esposas, filhas e netas.

Muitas vezes peguei frio de doer. Sentia mais do que eles, sulinos. Cachaça, outros destilados, vinhos de Bento Gonçalves (na época, eles ainda eram classe média), cervejas (nunca foi meu forte) e a boa e velha resiliência vendedora compensavam o congelamento.

Hoje em dia, enquanto escrevo olhando o quadro que retratava aquela última araucária, que não derrubei e continuei vendo outras nascendo, penso em todos vocês, alguns já numa saudade impossível de interromper, outros, com a esperança deles receber um convite que ainda permita nos unirmos, antes que o desastre ambiental, hoje em dia ainda curável infecção, como a dos últimos anos, possa se transformar em gangrena fatal.

Nos últimos anos as inconstâncias climáticas, até parecidas como vinham sendo as do século passado, eram eventuais. Épocas pontuais de plantio e colheita eram determinadas, em geral, pelos históricos ou o senso agudo (olfato?) experiente do lavrador. Dificultavam. Pouco. Pois bem, isso vem mudando a cada ano até as calamidades da atual safra.

Como traz a capa da última revista Globo Rural sobre os extremos climáticos em todas as regiões do País: “olho no céu, mão na terra”. O mesmo GR, só que na TV, mostra que, pelos mesmos motivos de seca ou excesso de chuvas, os prejuízos vão da salsinha ao milho e aos bovinos e outros rebanhos.

Satisfeitos? Eu não e creio nem vocês, pois além de vivermos disso, amamos a totalidade de que nos orgulhamos, pois tudo isso é Natureza benfazeja. Inclusive, a cachacinha que nunca mais vocês me convidaram para tomarmos juntos.

Pensando o quê? Fiquei quase pobre em relação aos amigos (lembram da Copas, né?), doente e, tirando a família, sozinho, mas, como filme de terror, nele, uma monstruosa gangrena vai crescendo e tomando conta do planeta até exterminá-lo.

Nota: não me lembrarei do nome de todos, nem creio que eles de mim também se lembrem. Dulce, Joni, Preta, Jorge, Juarez, Lagarto, Nico, Ilário, Helena, Marco “Cambridge” (?) Bomm, (desculpe, Marco, talvez Oxford, escrevo de memória já meio despreparada), Mauri Sardá, José Luiz e Aluísio Mambrini, Peninha, Comunidade do Lajadinho, Tuco o fiel cachorro, convidados.

Tô vivo e com muita saudade. Inté!

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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