Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Crimes de feminicídio destroem famílias inteiras

Precisamos de um novo pacto civilizatório, calcado na igualdade de direitos e no reconhecimento mútuo

Feminicídio não é um crime como qualquer outro
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Ao longo da minha caminhada como professora da Educação Básica, o mês de março sempre foi dedicado a pensar, refletir sobre a condição feminina no Brasil. Uma maneira de provocar, ressignificar o currículo escolar, cujos conteúdos muitas vezes permanecem alheios ao tempo presente, à realidade dos estudantes. Aproveitava a efeméride do Dia Internacional da Mulher para inserir essa temática em sala de aula, o que considero fundamental para a construção de um novo pacto civilizatório, calcado na igualdade de direitos e no reconhecimento mútuo.

Eu me sentia motivada a promover uma educação feminista por entender que a escola não pode se eximir do seu papel de enfrentar as discriminações e buscar intervir nos abismos que marcam o nosso país. Além disso, a utilização de práticas pedagógicas que visem a conquistar a equidade de gênero é um direito que não pode ser negado aos estudantes, conforme determinam as Diretrizes Curriculares Nacionais – da Educação Infantil ao Ensino Médio.

Fico feliz ao lembrar da receptividade, da indignação de crianças e jovens diante das disparidades salariais, das violências de gênero, dos preconceitos que recaem sobre os ombros de nós, mulheres. Nesses momentos, a sala de aula se transformava em um lugar de entusiasmo, “pegava fogo”. Ao contrário do deputado federal que no último 8 de março usou o microfone da Câmara para destilar ódio, ignorância e transfobia, meus alunos e alunas abriam a mente e o coração em face da urgência de eliminar as opressões que provocam tantos males aos grupos minoritários e à sociedade como um todo.

Em 2019, a epidemia de feminicídio foi o tema de uma atividade para uma turma do 3.º Ano do Ensino Médio. Apresentei a história da farmacêutica Maria da Penha, a vítima de violência doméstica que impulsionou, com sua luta, mudanças na legislação penal do Brasil e deu nome à Lei 11.340/06. Expus também dados, estatísticas, mostrei que o lar não é um lugar seguro para meninas e mulheres. Reverberando as palavras da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, lembrei que o machismo não só nos mata, como também aprisiona os homens. Depois de muita discussão, propus um trabalho em grupo, no qual os alunos deveriam apresentar propostas para a erradicação da violência que todos os anos interrompe a vida de Marias, Cláudias, Sônias, Rosas, Brunas, Glórias e tantas outras.

Para minha surpresa, ao final da aula, duas alunas que eram irmãs me procuraram e fizeram o seguinte pedido: “Professora, a gente queria pedir que a senhora não falasse muito desse assunto. A gente viveu isso dentro da nossa própria casa. Nossa mãe foi vítima de feminicídio“.

Fiquei sem reação, sem saber o que fazer. Quando pensei na trajetória de vida das garotas, senti uma enorme sensação de impotência, de tristeza. Abordei o tema com a melhor das intenções. Pretendia colaborar para a desnaturalizacão do assédio, das ameaças, das agressões sofridas diariamente pelas mulheres, inclusive por jovens da idade delas. Mesmo assim, infelizmente, minha aula as machucou, fez sangrar.

Pedi desculpas. Disse que iria repensar minhas falas, minhas práticas pedagógicas, de modo a não ferir ninguém e também continuar trabalhando para que histórias como a que elas me contaram não se repetissem.

Esse triste episódio me fez pensar no poder destruidor do feminicídio. Quando um homem assassina uma mulher, ele dilacera famílias inteiras, deixa órfãos e órfãs. Segundo levantamento divulgado pelo Fórum de Segurança Pública, em 2020, 2.376 crianças tiveram a mãe assassinada. Além da dor da perda, muitas têm que lidar com o trauma, pois há situações em que as mortes ocorrem diante de seus olhos.

Márcia Moraes, defensora pública do Estado do Amazonas, lembra que, em grande medida, os órfãos de feminicídio perdem de uma só vez a mãe e o pai, já que estes fogem ou são presos. Na ausência dos pais, em muitos dos casos, a guarda é concedida às avós, que têm de lidar com o luto e os cuidados com os netos, o que deixa suas rotinas extremamente sobrecarregadas.

Para tentar garantir maior proteção aos órfaos de feminicídios, tramita na Câmara Federal o projeto de Lei n.º 2753/20, de autoria da deputada Erika Kokay (PT/DF), que propõe a criação de serviços especiais de atendimento médico, psicossocial e de assistência jurídica para os filhos das vítimas, bem como prioridade na adoção quando se fizer necessário. Nesta quinta-feira, 9/03, a proposta da deputada Maria do Rosário (PT/RS), que prevê pensão para crianças e adolescentes cujas mães foram vítimas desse crime hediondo, foi aprovada. Para entrar em vigor, cabe agora análise e aprovação por parte do Senado.

De acordo com o levantamento realizado pelo portal G1, em 2022, o Brasil bateu recorde de feminicídios. No ano passado, 1.400 mulheres perderam a vida pelo simples fato de serem mulheres. No 8 de Março, mais uma vez, clamamos pelo fim dessa barbárie. Ao exigir medidas e políticas públicas de enfrentamento à violência que mata sobretudo as negras, é sempre importante lembrar: os crimes de feminicídio dizimam, destroem famílias inteiras, além de deixar sequelas insuperáveis que nos envergonham enquanto sociedade.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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