Aldo Fornazieri

Doutor em Ciência Política pela USP. Foi Diretor Acadêmico da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), onde é professor. Autor de 'Liderança e Poder'

Opinião

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Crescer ou crescer

O governo coleciona iniciativas positivas, mas o nó górdio do seu sucesso ou fracasso será definido pelo incerto rumo da economia

Se o ministro tivesse apresentado seu arcabouço fiscal antes, talvez o cenário político estivesse menos tumultuado agora – Imagem: Diogo Zacarias/MF e Renato Luiz Ferreira
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Embora cem dias não seja um número cabalístico, parece que para os governos assumiu essa dimensão. Trata-se de um marco temporal arbitrário sem que se saiba bem a origem. Pode ter se originado no “governo dos cem dias” de Napoleão Bonaparte, de 20 de março a 8 de julho de 1815, quando ele fugiu de Elba e retomou o governo. Então foi derrubado por uma coalizão de países e confinado até a morte na ilha de Santa Helena. Quando Franklin D. Roosevelt lançou, no centésimo dia de sua gestão, um pacote de medidas para combater a Grande Depressão nos EUA, nos anos 1930, a efeméride entrou de vez no calendário político.

Lula chega aos cem dias de seu terceiro mandato com avaliações de dois institutos de pesquisa, o Ipec e o Datafolha. Pela ordem, o governo obtém 41% e 38% de bom e ótimo; 32% e 30% de regular: e 32% e 29% de ruim ou péssimo. São números aquém dos dois mandatos lulistas anteriores e do primeiro mandato de Dilma, mas superiores aos de Bolsonaro no mesmo período de 2019. Os dados apontam para uma conclusão ambivalente: não são satisfatórios, mas também não são desastrosos.

Da mesma forma, refletem duas realidades igualmente ambivalentes. A primeira é caracterizada pela série de eventos negativos que marcam esse período, quase todos fora da capacidade de intervenção do governo: o golpe frustrado de 8 de janeiro, a tragédia dos Yanomâmis, o desastre em São Sebastião, a violência do crime organizado em Natal, a revelação das práticas de trabalho escravo em diversas regiões do País, com destaque para o caso da Serra Gaúcha, e o assassinato da professora em uma escola paulista.

Esses eventos carregaram as pautas do noticiário negativamente, contaminando a percepção da sociedade. O governo também contribuiu na atração de elementos de ambiente negativo sobre si. Destacam-se as declarações de Lula sobre Sergio Moro e as investidas de natureza pessoal que ele e Gleisi Hoffmann travaram contra o presidente do Banco Central.

O próprio BC, ao manter uma elevada e injustificável taxa de juros, contribui para azedar o humor dos brasileiros. Soma-se a isto a inflação alta, o desemprego persistente, a fome e a miséria, retratadas principalmente pelos moradores de rua que chegam aos 50 mil na capital paulista. Ruídos causados por decisões equivocadas de alguns ministros acresceram esses desgastes. Ainda no plano da economia, somente aos 90 dias de governo houve uma sinalização clara do que se vai fazer nessa área. A apresentação das linhas gerais da política fiscal de Haddad abre a porta para uma virada positiva.

O governo contrabalançou os aspectos negativos com uma série de medidas e iniciativas que geram repercussão positiva. Destacam-se a decretação da Emergência em Saúde e as medidas de socorro para os Yanomâmis, a união dos Três Poderes, com a participação dos governadores, em repúdio à tentativa de golpe de 8 de janeiro, a recomposição de políticas sociais destruídas por Bolsonaro, como o Bolsa Família, o Minha Casa Minha Vida, o incentivo à cultura, a valorização do salário mínimo etc.

Haddad demorou excessivamente para apresentar a sua política econômica e atrair investimentos

As iniciativas de política externa, com as viagens aos EUA, Argentina, Uruguai e China, também produziram saldos positivos. Lula, com sua diplomacia presidencial, está conseguindo debelar a imagem negativa e desastrosa, de pária, que o Brasil havia assumido no governo Bolsonaro.

Positivo também é o movimento de superação do mal-estar do governo com os militares por conta do 8 de janeiro. Para que esse processo se conclua, é preciso institucionalizar ordenamentos que coíbam a participação política dos militares, que estabeleçam a passagem automática para a reserva e com quarentena para aqueles que pretendem seguir a carreira política. Do mesmo modo, é preciso afastar de vez a interpretação do artigo 142 da Constituição como autorizativo da tutela das Forças Armadas sobre a República.

O nó górdio do sucesso ou do fracasso do governo será definido, porém, pelo desempenho da economia. O governo, até agora, não conseguiu criar um ambiente positivo e de confiança junto aos agentes econômicos, capaz de mobilizá-los nas decisões de novos investimentos. Investimentos necessários para a retomada do crescimento e geração de emprego e renda.

O governo demorou excessivamente para apresentar a sua política econômica. Essa falta de virada de chave para o ambiente de confiança indica que Lula deveria ter escolhido seu ministro da Fazenda logo após a vitória eleitoral, ­autorizando-o a formar sua equipe e definir o programa econômico. Se o programa tivesse sido apresentado no início do governo, o ambiente econômico já seria outro neste momento. Agora é necessário acelerar as definições para superar as incertezas. As bases lançadas por Haddad em 30 de março são o começo do caminho da estabilidade, da mobilização de investimentos e da redução dos juros e da inflação.

Outra conclusão que se impõe é a de que o governo precisa melhorar sua comunicação. Ela depende, contudo, dos objetivos claros que o governo pretende alcançar e da capacidade de direção política para conduzir o conjunto dos ministérios e a base de apoio, no Congresso e na sociedade, na direção desses objetivos. Comunicação e política são interdependentes. Mas em comunicação política, a política deve comandar o processo, dar a última palavra.

Lula também deve calibrar melhor o modelo de presidente que quer seguir. Não pode seguir o exemplo de Bolsonaro, um presidente faccioso, que agiu para favorecer sua facção. Convém resgatar o modelo de estadista que imprimiu seus mandatos anteriores. Lula deve ser o símbolo da unidade do País, da representação do povo como chefe de governo e chefe de Estado.

Como símbolo da unidade do povo, não significa que Lula governará sem prioridades, tampouco que não haverá luta política. Mas os palcos principais dela serão as casas legislativas e os espaços públicos da sociedade e de expressão da opinião pública. O palco dos espaços das ruas e das mobilizações políticas e sociais deve ocupar um lugar de destaque. •


*Cientista político, professor da Escola de Sociologia e Política e autor, entre outros, de Liderança e Poder (Editora Contracorrente).

Publicado na edição n° 1254 de CartaCapital, em 12 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Crescer ou crescer’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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