Lucia Helena Silva Barros de Oliveira

Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro; atual coordenadora de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. Mestre em Direito.

Opinião

Cotas raciais: descerrando portas e janelas

As cotas raciais estão apenas no começo e Defensorias Públicas ainda têm muito a evoluir na composição de seus quadros.

Fachada da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. Foto: DPE/RJ
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Cota Não é Esmola.
Existe muita coisa que não te disseram na escola
Cota não é esmola
Experimenta nascer preto na favela, pra você ver
O que rola com preto e pobre não aparece na TV
Opressão, humilhação, preconceito
A gente sabe como termina quando começa desse jeito
Desde pequena fazendo o corre pra ajudar os pais
Cuida de criança, limpa a casa, outras coisas mais
Deu meio-dia, toma banho, vai pra escola a pé
Não tem dinheiro pro busão
Sua mãe usou mais cedo pra correr comprar o pão
Mas, como é preta e pobre, o motorista grita: Não!
E essa é só a primeira porta que se fecha. […]

– Bia Ferreira

Com vistas a corrigir séculos de injustiça e desigualdade, instituíram-se as cotas raciais no Brasil, sob a promessa de inserir a população negra em geral nas universidades — lugar que, para os negros e negras de nosso país, não passava de sonho remoto e impalpável. Sim, a universidade não era um espaço que abrigava essa população. Nas graduações, a maioria era — e ainda é — branca. Quanto aos cursos de mestrado e doutorado, então, ver negros e negras nesse espaço acadêmico era algo impensável!

No Brasil, as cotas raciais contaram com a iniciativa do Governo Federal, em 2012, através da Lei n. 12.711. No entanto, algumas universidades, à época, já continham as cotas entre suas ações afirmativas, como forma de reduzir as injustiças impostas sobretudo ao povo negro, as quais, como bem se sabe, não cessaram com o advento das leis abolicionistas. Isso porque tais leis não trouxeram sequer a necessária igualdade de oportunidades para receber esse povo em sociedade.

Como diz a sabedoria popular, “não ofereceram chinelos para pés descalços”! Desse modo, esses pés negros, lamentavelmente, continuaram — e, em alguma medida, ainda continuam — descalços!

Não houve preocupação em cuidar dos corpos negros, que se mantiveram desimportantes para a sociedade! Se o negro podia fazer o trabalho dito “braçal”, tanto melhor que o mantivessem na ignorância intelectual, na alienação dos espaços privilegiados dos brancos…

Em 2014, contudo, através da Lei n. 12.990, surgiu uma nova legislação, destinando, aos negros em geral, vinte por cento das vagas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da Administração Pública Federal, autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista controladas pela União.

Sem dúvida, esse ainda escasso arcabouço jurídico é mais do que necessário em uma população estimada em mais de 213 milhões de habitantes, com mais da metade preta ou parda, mas apenas cerca de 10% desse grupo logrou concluir o curso superior completo.

Avanço. Segundo o IBGE, pretos e pardos representam 50,3% dos alunos de graduação nas instituições públicas

Por outro lado, quando o assunto é encarceramento ou morte violenta, a população negra assume a liderança no ranking. Esses dados revelam friamente em que medida precisamos caminhar para trazer a necessária representatividade dos negros e negras aos espaços de poder, aos espaços universitários e aos muitos outros espaços que, por direito, devemos ocupar.

Esse contexto inóspito ao negro abrange, igualmente, a carreira de Defensor Público — carreira que esta autora escolheu e abraçou. O IV Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil, lançado pelo Ministério da Justiça em 2016, registra que 76% das Defensoras e dos Defensores Públicos dos estados se autodeclararam brancos; 19%, pardos; 2,2%, pretos; 1,8%, amarelos; e 0,4%, indígenas. Alguns levantamentos realizados apontam que as Defensorias Públicas têm cerca de 4% de seu quadro composto por pessoas autodeclaradas negras.

E, se cotejarmos esse percentual com a população brasileira em geral, composta por cerca de 50% de pessoas negras, conclui-se por irrisória a composição de negros e negras entre os Defensores Públicos. Por outro lado, observa-se que a maioria dos usuários dos serviços prestados por esse órgão é composta por pessoas negras, em face do perfil socioeconômico brasileiro.

Todavia, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro não se mantém inerte diante desse quadro desigual.

Com o fim de reconhecer a imperiosa necessidade da equidade étnico-racial e de valorizar a prática do antirracismo em geral — bandeira que, igualmente, deve ser levantada por toda a sociedade —, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro vem formulando e articulando diversas ações nesse sentido.

Ilustrativamente, cita-se a ampliação da reserva de vagas para 30% da população negra e indígena no XXVII Concurso Público para ingresso na carreira de Defensoras e Defensores Públicos do Estado do Rio de Janeiro. Isso representa, em si, uma grande vitória, sobretudo em face da pouca expressividade do número de Defensoras e Defensores autodeclarados negros.

Portanto, nenhum esforço para minimizar esse quadro incongruente deve ser ignorado. Todo empenho — em que medida for — constitui um grande marco de resgate, mais do que necessário, das diferenças históricas impostas aos negras e às negras. A questão racial é um grande problema no Brasil. A diferença é que, até um passado bem recente, essas questões não eram verbalizadas, discutidas ou veiculadas na mídia. Não se discutia racismo na sociedade. Não se discutia política de cotas.

Mas o encarceramento social se fazia — como ainda se faz — presente. O negro buscava romper essa bolha, descerrar o confinamento social, libertar-se… No princípio, havia apenas algumas pequenas janelas e, já recentemente, algumas portas se abriram. A cota racial, sem dúvida, foi uma porta mais larga. Por ela, já atravessaram muitos negros. Por ela, ainda cruzarão muitos outros, rompendo com essa condenação injusta ao ostracismo social.

E, assim, atenua-se a falta de oportunidades que, no mais das vezes, deságua em tristes consequências, na idade adulta, aos nossos meninos e meninas, fruto de um processo histórico de acúmulo de privilégios limitado à população branca.

Nesse contexto, indaga-se: sob qual argumento seria legítimo negar a importância e a eficácia das cotas raciais? Alguns alegam que todos são iguais, razão pela qual não deveríamos ter cotas raciais…

Outros, que o Governo deveria investir mais na área de Educação, de modo a qualificar a população negra e, assim, tornar desnecessária a política de cotas. A meu ver, contudo, nada disso se sustenta, pois a população negra tem oportunidades distintas e em graus distintos. Não se deve perder de vista a imperiosa reparação histórica.

Nesse sentido, tal conta impagável com a população negra não pode ser reparada por um único meio, ou seja, apenas com o texto constitucional estabelecendo e reconhecendo que todos são iguais perante a Lei. É preciso agir e se comprometer. Trata-se de uma longa caminhada, de uma jornada em que a atribuição atual de algumas vantagens à população negra significa, tão somente, pequena reparação de séculos de desigualdades.

Busca-se, portanto, igualar os desiguais!

Por derradeiro, remete-se à canção de Bia Ferreira — que ilustrou a epígrafe. Traçando uma analogia, Bia descreveu a “primeira porta” simbólica que se fechava para a população negra. Aqui, conclui-se que a cota racial pode ser considerada uma das “primeiras portas” que se abrem para essa mesma população vir a ocupar o espaço que também é seu por direito, democratizando, assim, espaços de poder e de progresso em âmbito nacional.

Que mais janelas e portas se abram!!! E que as palavras de Dominguinhos, nessa música-poema (Abri a porta) cantada por Gilberto Gil, sejam proféticas:

E usufruir do bom, do mel e do melhor / Seja comum / Pra qualquer um / Seja quem for.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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