Ana Graça Correia Wittkowski

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Nascida e criada em Salvador da Bahia. Quinta de oito crianças, formada em Letras Vernáculas pela UFBa. Pós-Graduada em Literatura Contemporânea pela UEFS-Bahia. Formada em Etinologia e Lusitanística pela Johannes-Gutenberg-Universität-Mainz. Fundadora da ONG-BrasilNilê. Embaixadora da Década Internacional dos Afrodescentes na Alemanha.

Opinião

Coronavírus e a insanidade que assola a Alemanha

Protesto de pessoas privilegiadas achando que estão em uma ditadura por terem que se vacinar e usar máscara é digno de pena

Homem branco na Alemanha segura máscara de Anastácia, em protesto contra o uso de máscaras pelo coronavírus. Foto: SEBASTIEN BOZON / AFP
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Uma das coisas que mais me agrada na língua alemã é como palavras compostas realmente mantém seu significado, o que torna fácil a aprendizagem do idioma. No caso da palavra “Querdenker” a palavra é composta de um anglicismo queer – segundo minhas informações demonstra uma orientação sexual, por exemplo, ou indica alguém vindo de outra direção, como pessoas que vêm de outra área. A palavra “denker” quer dizer pensador/filósofo.

Infelizmente, este grupo que se apropriou deste termo não corresponde absolutamente nicht com uma orientação queer e pensadores, no sentido de pessoas com uma capacidade de verbalizar valores e respeito a outras identidades. Esses grupos que, na verdade, também não são homogêneos têm em comum o grande privilégio de terem desfrutado uma vida inteira de um sistema democrático que lhes garantiu toda liberdade de expressão e escolha, escolha inclusive de decidir tomar ou não vacinas, tendo, ainda, direito a serviço médico de qualidade. Também não tiveram que preocupar-se durante muito tempo se haveria para si algum tipo de consequência por suas escolhas.

Hoje juntam-se às demonstrações contra as medidas para a pandemia os chamados patriotas, uma definição ampla que compreende, inclusive, o grupo de direita “Der dritte Weg – O terceiro caminho”, que não aceita a Alemanha como uma República. E, assim, um partido que se diz alternativa se tornou um dos maiores porta-voz para grupos de direita – e eu me pergunto o que passa com esse tipo de seres humanos que tiveram chance e acesso às escolas, a viajar para todas as partes do mundo  festejando e admirando essas ascensões perigosas.

Mais um fim de semana vejo com grande irritação a liberdade de expressão sendo abusada por pessoas que utilizam o direito da democracia para destruí-la. Aqui na Alemanha há pessoas que saem às ruas todas as segundas-feiras e nos fins de semana para protestarem contra as decisões que são tomadas para reter a pandemia; saem às ruas para que não tenhamos que fazer triagem nos hospitais e ter que ser decidido quem terá uma chance para viver e quem terá que morrer sem ter a chance de um atendimento digno.

Esses seres humanos que saem às ruas têm a ridicularidade de dizer que estão vivendo uma ditadura.

Eles saem às ruas, vão e voltam para casa ilesos e mesmo assim insistem que estão em uma ditadura. Creio que se trata da mesma técnica de Göebbels: repetirão tantas e tantas vezes esta mentira até virar verdade?

Claro que eu também preferiria estar despreocupada na hora de tomar o ônibus para o trabalho, de poder ir na fisioterapeuta sem ter o medo de sair de lá contaminada por este vírus, trabalhar na escola sem que tenha medo de me aproximar das crianças, abraçar amigas. Mas nem por isso podemos dizer que estamos vivendo em  uma ditadura.

Quando olho, de longe, estas demonstrações de “Querdenker “ parece que não estou em um país desenvolvido mas sim no “Absurdistão”. É simplesmente imensurável a ousadia que eles têm, não existe limites que não sejam transgredidos e confesso que muito mais que irritada, fiquei furiosa ao ver na televisão em uma das demonstrações a imagem da Santa Anastácia  sendo levada por um homem branco; várias vezes usaram em suas passeatas essa imagem como se usar a máscara para se proteger da contaminação tivesse a mesma função que a máscara usada por Anastácia.

Meses depois eles ousam sair pelas ruas usando a estrela amarela que era usada pelos nazistas para marcar pessoas judias.

Uma outra jovem de 19 anos,  chamada Jana da cidade de Kassel ficou famosa por se comparar à ativista Sophie School,  que foi assassinada por ser contra a proliferação do nazismo.

Uma mãe compara sua filha à jovem Anne Frank porque não podia fazer a festinha de aniversário.

Não sou contra que queiram demonstrar já que a democracia tem que garantir o direito de liberdade de expressão, mas é preocupante quando vemos pessoas em outras partes do mundo que sequer tiveram o direito à 1ª dose de vacina, enquanto aqui há seres que desfrutaram  de tantos privilégios que já nem sequer percebem mais que também são só seres humanos e não semideuses somente pelo fato de possuirem um passaporte europeu. Confesso que não tenho mais compreensão e fica minha grande irritação de ver símbolos serem assim banalizados, sucateados perdendo seus valores históricos.

Pedindo licença, eu cito Dr. Rodney William no seu livro Apropriação cultural: “o respeito pela cultura de grupos historicamente subjugados é primordial”.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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