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Coringa acerta ao não apelar para o psicologismo vulgar

A tentação de traçar diagnósticos puramente clínicos de Fleck é superada com primor

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SEM SPOILERS

Numa das cenas finais de Batman (1989), o herói e o Coringa, vivido por Jack Nicholson, iniciam uma discussão acerca de quem criou quem. Valendo-se da imprecisão dos quadrinhos sobre a origem do vilão, o palhaço acusa Batman de tê-lo criado, pois seria o responsável por sua queda numa bacia de produtos químicos durante uma missão antiga. As deformações físicas e os distúrbios mentais oriundos do contato com essas substâncias teriam sido cruciais para o desenvolvimento da personalidade psicótica do personagem.

Batman retruca, imputando ao Coringa a responsabilidade pela sua existência enquanto justiceiro. Isso por que, muito antes da fatídica queda, foi o Coringa quem puxou o gatilho contra os pais do pequeno Bruce Wayne, fixando, assim, a pedra fundamental da cadeia de acontecimentos que o levariam a vestir capa e sair pela noite caçando malfeitores.

A brecha dos quadrinhos sobre como o Coringa surgiu também é aproveitada em Batman: O Cavaleiro das Trevas. Nele, o personagem, na apoteótica interpretação de Heath Ledger, interpela suas vítimas com diferentes versões de como teria conseguido as cicatrizes que se estendem pelos cantos da boca. Na esteira das licenças poéticas, a margem para manobras criativas é da mesma forma explorada em Coringa, em cartaz desde o início de outubro.

Arthur Fleck, interpretado por Joaquin Phoenix, vive numa Gotham City ainda livre dos vilões em trajes excêntricos que em um futuro não muito distante povoarão os pavilhões do Asilo Arkham. São outros males que tiram o sono dos gothamitas, ainda desacostumados com a típica indiscrição dos inimigos do Batman.

As primeiras cenas contam com sucessivos noticiários sobre uma greve dos trabalhadores da limpeza urbana e as consequências do acúmulo de lixo nas ruas. A insatisfação toma conta da população de Gotham, empobrecida e desempregada. Na crise, um certo magnata surfa na indignação popular e apresenta sua candidatura a prefeito. As indolentes promessas de resolver todos os problemas da cidade entremeadas por um preguiçoso discurso meritocrático acabam por promover, involuntariamente, a terraplenagem de onde brotará o arqui-inimigo do homem morcego.  

O filme acerta ao não apelar para o psicologismo vulgar.

A tentação de traçar diagnósticos puramente clínicos de Fleck é superada com primor, dando destaque à forja de sua subjetividade nas profundas raízes da experiência social. Embora o quadro de saúde de Fleck beire à hipocondria – circunstância que serve, inclusive, de pano de fundo para tratar do desmonte da seguridade social -, o roteiro foge da conveniência de patologizar o desenvolvimento do personagem até o seu amadurecimento. Uma escolha ousada, considerando que se trata de uma figura octogenária que, no senso comum, é apresentado pela caricatura de alguém com graves enfermidades mentais.

Mesmo fugindo desse clichê, o filme não abre mão de mostrar o protagonista como uma pessoa doente – mas não sem deixar claro que o que faz Fleck sofrer vem de fora, fruto de um meio onde o caráter descartável dos seres humanos aparece na esteira de mecanismos ideológicos que legitimam sua desumanidade (um destes mecanismos é a meritocracia mencionada linhas atrás). 

A monetarização da vida, característica inerente à sociabilidade capitalista, é percebida por Fleck, que calcula o valor da sua existência em centavos a partir da consciência de que o lugar que ocupa na pirâmide social o faz insignificante para pessoas como Thomas Wayne, pai do seu futuro antípoda, e o apresentador Franklin Murray, interpretado por ninguém menos que Robert De Niro, cujo personagem no clássico Taxi Driver serviu de franca inspiração para Phoenix.

Em O Orangotango Marxista, Marcelo Rubens Paiva reflete sobre o papel do Batman. Sua luta, identificada com a vingança, não se vincularia a uma classe ou segmento social, vez que exclusiva, solitária e desagregadora. Nesse sentido, Batman seria apenas o capitalismo tentando organizar o capitalismo, pois enxerga o mal como produto da liberdade e da igualdade formais, burguesas. Ou seja: baseado em escolhas moralmente equivocadas. 

“Não adianta nada existir apenas um Batman contra uma sociedade corrompida, ingrata e injusta sobre ruínas e caos”, conclui o primata do título do livro, que prossegue: “de esquina em esquina, do topo dos prédios, nos becos escuros, imóveis abandonados, fábricas em que goteja água de encanamentos ou que sempre têm um galão com ácido para destruir o inimigo, Batman exerce o seu desejo e sua missão de eliminar o mal, de um em um,  sem eliminar o mal por completo”.

Coringa vai na direção contrária, demonstrando como do mal completo – austeridade, exclusão social, exploração, pauperização, desigualdade, etc. – surgem fenômenos particulares que são próprios da natureza disfuncional de um modo de produção que têm como horizonte a obscena acumulação de riquezas nas mãos de uma minoria às custas da deterioração das condições de vida da maioria.

Não é sem razão que parte da direita ficou em polvorosa com o filme. Apenas mais uma razão para ir aos cinemas.

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