Amarílis Costa

Advogada, doutoranda em Direitos Humanos na Faculdade de Direito USP, mestra em Ciências Humanas, pesquisadora do GEPPIS-EACH-USP, diretora executiva da Rede Liberdade.

Opinião

COP30 e o risco de uma conferência sem povo

Sem a participação efetiva de comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, periferias urbanas e juventudes, a conferência arrisca se reduzir a um ritual diplomático desconectado

COP30 e o risco de uma conferência sem povo
COP30 e o risco de uma conferência sem povo
Belém será a sede da COP30. Foto: Carlos Fabal / AFP
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No dia 10 de novembro de 2025, Belém do Pará receberá a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP30. Restando apenas pouco mais de um mês para a abertura, a expectativa é de que o encontro represente um marco na agenda internacional: pela primeira vez, a Amazônia será palco da mais importante negociação multilateral sobre o futuro climático do planeta. O simbolismo é inequívoco — trata-se de sediar um debate global no coração de um território essencial à regulação climática e lar de povos que historicamente resistem à lógica predatória da exploração ambiental.

A proximidade do evento nos convoca a pensar não apenas nas metas a serem anunciadas, mas na construção de uma agenda duradoura, capaz de integrar Estado, ciência e movimentos populares. Sem a participação efetiva de comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, periferias urbanas e juventudes, a conferência arrisca se reduzir a um ritual diplomático desconectado da realidade amazônica. É nesse ponto que a política internacional encontra sua prova de fogo: ou se abre ao diálogo com os que vivem na linha de frente da crise, ou repetirá os erros de conferências passadas.

Os preparativos já revelam contradições. A greve dos trabalhadores da construção civil, que paralisou obras da chamada “Vila dos Líderes”, mostrou que o evento não pode ser erguido à custa da precarização laboral. Do mesmo modo, a crise de hospedagem em Belém expõe um problema grave: com preços de hotéis multiplicados, a cidade não tem conseguido abrigar nem mesmo o povo brasileiro que desejaria acompanhar o evento, quanto mais delegações estrangeiras de países pobres. A COP30 pode ser lembrada não como um espaço plural de negociação, mas como uma cúpula restrita a quem pode pagar — um contrassenso em se tratando da Amazônia, região-símbolo da hospitalidade e da diversidade.

Nesse cenário, a noção de justiça climática torna-se ainda mais urgente. Mais de 240 organizações já alertaram que enfrentar a emergência ambiental requer reconhecer desigualdades históricas e contemporâneas. Justiça climática significa garantir dignidade concreta: acesso à saúde, proteção contra enchentes e secas extremas, direito à água potável, respeito ao território e à cultura de cada povo. Não se trata apenas de reduzir emissões, mas de assegurar que a transição ecológica não agrave as injustiças já existentes.

Como lembra o pensador quilombola Nêgo Bispo, “mesmo que queimem os corpos, não queimam a ancestralidade”. Sua afirmação ecoa como um chamado a reconhecer que a luta climática é também uma luta pela preservação da memória, da oralidade e da sabedoria que sustentam modos de vida coletivos. Para Bispo, aprender é uma experiência que cresce com o compartilhamento e a vida se fortalece pela reciprocidade com a terra. Essa visão de mundo, baseada no pensamento circular, inspira um horizonte no qual não há fim, mas recomeço: o cuidado com a floresta e com os povos não é apenas uma pauta do presente, mas um compromisso histórico com o futuro.

A União Europeia, ao anunciar novas metas de emissões, tenta reforçar sua credibilidade internacional, mas persiste a discrepância entre responsabilidades históricas e compromissos efetivos. Enquanto isso, o Brasil, na condição de anfitrião, defende novas estruturas de governança climática global. O desafio, porém, é que tais mecanismos não sejam apenas uma diplomacia de cúpula. Precisam incluir vozes plurais. Aquelas que, desde as margens, apontam caminhos de convivência e resistência.

O interesse crescente no Brasil, com buscas sobre a COP30 aumentando mais de 400% nos últimos meses, mostra que a sociedade reconhece a relevância do evento. Mas o legado que se espera não é o de uma conferência vistosa, e sim o de um processo transformador: que deixe infraestrutura para a Amazônia, que respeite a dignidade de seus trabalhadores, que reconheça os povos da floresta como protagonistas e que projete o Brasil como referência de compromisso climático com justiça social.

Se a COP30 for capaz de unir compromissos globais à defesa da Amazônia e de seus povos, poderá ser lembrada como um marco histórico. Caso contrário, ficará registrada como mais uma cúpula que transformou a floresta em cenário, mas não lhe garantiu voz. O desafio, portanto, é claro: que a Amazônia não seja palco, mas sujeito; que não seja apenas paisagem, mas horizonte de futuro.

E que esse futuro seja iluminado pela sabedoria ancestral de Nêgo Bispo, que nos recorda: “A terra não é apenas um lugar de onde se tira. A terra oferece alimentos, vida e caminho, e também requer cuidado, respeito e reciprocidade”. Que a COP30 saiba ouvir essa lição — pois dela depende não apenas a Amazônia, mas o destino comum da humanidade.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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