Bruno Choairy Cunha de Lima

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É procurador do Trabalho, representante da Codemat de Mato Grosso e coordenador do Fórum Mato-Grossense de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos.

Leomar Daroncho

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É procurador do Trabalho e diretor geral do Ministério Público do Trabalho.

Opinião

Continuaremos bebendo a água utilizada pelos dinossauros

Como toda a água é reusada, é fundamental que haja efetivo controle da produção, da comercialização e do emprego de técnicas

(Foto: Timo Sachsenberg/Wikimedia Commons)
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O presidente revelou o quanto é trivial conhecer a fórmula da água: H20. Também sabemos que não existe água nova. Não que seja impossível produzir, mas a operação seria economicamente inviável.

Cumprindo seus ciclos, a água volta para a natureza e para as nossas torneiras. Ainda é mais barato tratar e reutilizar a água do que produzi-la em laboratório. Assim, continuamos reutilizando e bebendo a água utilizada, há milhões de anos, por nossos antepassados e pelos dinossauros.

A novidade é que nunca a água foi tão contaminada. Em 2019, estudo que usou dados oficiais do Ministério da Saúde, acendeu o alerta sobre a qualidade da água das torneiras. Um conjunto de 27 tipos diferentes de agrotóxicos foi encontrado na água de 1 em cada 4 cidades do Brasil entre 2014 e 2017.

A situação da contaminação da água é tão grave que do total de 27 princípios ativos pesquisados 21 são proibidos na união europeia em razão de seus riscos. Deve ser destacado também que a exposição contínua a múltiplos produtos tóxicos tem efeitos imprevisíveis para a saúde humana, já que, em regra, a avaliação quanto à segurança dos agentes químicos é feita isoladamente, sem considerar a exposição à mistura das diversas substâncias que compõem o “coquetel químico” que ingerimos.

Não é difícil compreender que esses dados são resultado do modelo de exploração agrícola adotado no Brasil, que privilegia a produção de commodities destinadas a exportação, em regime de dependência de venenos e insumos químicos. Não por acaso a contaminação da água cresce à medida que também se amplia a utilização de veneno nas lavouras. Em 2014, 75% dos testes detectaram agrotóxicos, subindo para 84% em 2015 e 88% em 2016. Em 2017, chegamos a espantosa contaminação de 92% das amostras.

Constatação óbvia, mas que passa despercebida é a de que, depois de espalhado no ambiente, o agrotóxico e seus componentes não desaparecem subitamente, como mágica.

Podem ser assimilados nos frutos da lavoura em que foram usados, e isso explica que quase um terço dos alimentos consumidos cotidianamente pelos brasileiros está contaminado por agrotóxicos acima dos limites de tolerância ou não autorizado para a aquele cultura, segundo análise de amostras coletadas em todas os 26 estados do Brasil, realizada pelo Programa de Analise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (Para) da Anvisa em 2011.

Por outro lado, grande parte do veneno despejado é incorporado ao meio ambiente. Na natureza, transformado ou não, dispersa-se no solo e no ar, também se infiltra em mananciais subterrâneos ou em fontes de água superficiais como lagos, rios e represas. Inevitavelmente, as substâncias químicas são levadas à água, inclusive àquela que retorna para o consumo da população.

No Brasil, quem define os parâmetros de portabilidade da água é o Ministério da Saúde. Como é caro tratar a água, os parâmetros vêm sendo flexibilizados. A Portaria em vigor (Portaria 2.914/2011) admite que a água servida à população contenha até 27 tipos de agrotóxico, 15 metais pesados, 15 solventes e 7 produtos derivados da desinfecção domiciliar.

Assim, as revelações acerca da quantidade alarmante de agrotóxicos encontrada na água potável dos municípios brasileiros também evidenciam o exacerbado e crescente uso de veneno na agricultura, resultado de um modelo permissivo que autoriza inclusive pulverização aérea, proibida em boa parte do mundo civilizado justamente por contribuir para a dispersão descontrolada de substâncias químicas no meio ambiente.

Os impactos na saúde pública são chocantes. Recentemente, o Centro Infantil Boldrini (Campinas – SP), hospital especializado e referência mundial no tratamento de câncer infantil e doenças do sangue, veiculou o alerta sobre pesquisas científicas que identificam a associação entre a exposição de gestantes a agrotóxicos e a malformação congênita dos bebês: “A maioria dos defeitos fetais está associada a causas genéticas e ambientais, entre elas, a exposição de gestantes ao uso intensivo de agrotóxicos”. Os estudos apontam que a malformação fetal está relacionada tanto à exposição das mães quanto dos pais aos agrotóxicos. “As crianças cujos pais foram expostos aos pesticidas e cujas mães têm baixo nível de educação são mais susceptíveis a malformações congênitas”.

Assim, demonstrados os graves sintomas da contaminação da água, estamos diante da urgência de postura responsável em relação à preservação da qualidade da água servida à população. Não é possível continuar mantendo a indiferença diante do intenso uso de substâncias cada vez mais tóxicas que contaminarão as águas que chegam às nossas torneiras.

Por disposição constitucional, todos temos o dever de, junto com o poder público, zelar pelo meio ambiente ecologicamente equilibrado, para as presentes e futuras gerações, e a água é por definição um bem de uso comum do povo, essencial à qualidade de vida.

Continuaremos bebendo a água utilizada pelos dinossauros, só que contaminada. Como toda a água é reusada, é fundamental que haja efetivo controle da produção, da comercialização e do emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a água e para a vida.

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