André Carvalhal

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Escritor e especialista em design para sustentabilidade.

Opinião

Consumo consciente é um processo de corresponsabilidade

O conceito não se resume a consumir algo sustentável e/ou sem impacto negativo. Tem a ver com conhecer os efeitos do que estamos consumindo

CONSUMO CONSCIENTE NÃO É UMA RESPONSABILIDADE SOMENTE DE QUEM FAZ OU DE QUEM CONSOME (Foto: markusspiske | pixabay.com)
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Quinze de outubro foi dia do consumo consciente. E eu acho muito simbólico que esta data caia junto com o Dia do Professor, pois, para mim, consciência tem tudo a ver com informação, educação, conhecimento e principalmente com dar luz a determinado tema.

Sinto cada vez mais que as marcas e pessoas com conhecimento de causa precisam atuar na educação e disseminação de novas ideias. Mas se os tempos parecem difíceis para comemorar o dia do mestre, quem dirá o do consumo consciente (eu, por exemplo, acordei com mensagens de marcas fazendo promoções para o “consumidor consciente”, pode isso?!).

Ainda há muita falta de informação. Quem tem algum conhecimento do assunto sabe que todo tipo de produção (digamos) convencional está ligada à devastação e exploração do meio ambiente e de muitas pessoas (desde quem faz até quem compra), e, por isso, comprar qualquer coisa gera um impacto no planeta – podendo este ser positivo ou negativo.

Uma das razões do consumo “inconsciente” – e também da criação, produção e comunicação inconsciente – é a falta de informação e conhecimento sobre tais impactos. Para piorar, vejo crescer o número de narrativas frágeis e falsas de sustentabilidade, que atuam como desserviço para quem de fato gostaria de consumir de forma mais consciente. E é aí que mora o perigo.

Como educador e escritor, nesta data senti vontade de compartilhar alguns aprendizados sobre o tema e que podem nos ajudar a fugir das armadilhas do mercado. Enquanto a consciência vem ganhando espaço na moda, comunicar uma parte pequena e isolada de novos processos e mudanças (sem que haja transformações sistêmicas) para posicionar marcas e produtos como “sustentáveis” tem sido a nova onda do mercado (fique atento, o nome disso é greenwashing).

Tenho compreendido que o consumo consciente não está relacionado exclusivamente a consumir algo “sustentável” e/ou que não gera impacto negativo. Tem a ver com conhecer os impactos do que estamos consumindo. Logo, o único caminho possível para estabelecer uma relação de consumo consciente é através do questionamento e da transparência. Ao invés de comunicar ações isoladas como algo que salva o mundo, é preciso comunicar os impactos e as metas de melhoria daquilo que se propõe a fazer.

O questionamento estimula as marcas a se aprofundarem em suas propostas. E se tudo causa um impacto é importante ter clareza para fazer escolhas e isso vem com a transparência e não com meias verdades. Então, ao ouvir por aí marcas comunicando consumo consciente (e outros memes relacionados), pergunte:

1) Marca Sustentável – O conceito de sustentabilidade está bastante desgastado e deturpado e muita gente nem sabe o que significa. A sustentabilidade, em sua essência, é uma utopia para os dias de hoje. Ser 100% sustentável não existe ainda e por isso deve-se querer entender mais de quem se vende como “marca sustentável”. Sempre que ouço isso de uma marca procuro saber quais são as iniciativas em prática e noto se fazem parte de todo o processo (do início ao fim) e em todas as áreas da empresa. Somente se cumprir tudo no âmbito econômico, social, ambiental e cultural ela pode ser considerada sustentável – caso contrário é falta de conhecimento – ou má fé.

2) Reciclado – A reciclagem, seguindo os conceitos da economia circular (de que nada é lixo, tudo pode voltar ao ciclo produtivo), é sem dúvida um caminho promissor para a construção de uma nova lógica de produção que gere menos impacto negativo no planeta, afinal, se economiza recursos virgens. Porém, hoje, atuar na reciclagem sem considerar impactos sistêmicos não é o suficiente. Uma roupa “reciclada” feita a partir de plástico (podendo ser poliéster ou PET, por exemplo) causa impactos ambientais no pós consumo, como a liberação de microplásticos em processo de lavagem (que acabam virando comida de espécies marinhas e consequentemente de humanos que se alimentam de espécies marinhas), e quando descartadas demoram séculos para se decompor, gerando mais impacto negativo (por conta dos gases liberados durante o processo de apodrecimento). Ou seja, não é porque é reciclado que não gera impacto ambiental. Depende muito do que está sendo reciclado e em qual contexto está inserido. Avalie.

3) Reciclável – Ser “reciclável” também não é garantia de nada, pois a taxa de reciclagem no Brasil é irrisória, e reciclar roupas e acessórios por aqui ainda é um fato isolado (mesmo que cresça o número de marcas de bolsas e sapatos com esse discurso). É importante procurar entender se a marca se responsabiliza pela reciclagem de tais produtos recicláveis ou onde eles podem ser reciclados no Brasil (para onde deve-se destinar o produto quando quiser se desfazer). Se de fato eles voltam para o ciclo produtivo da marca, sendo usados como matéria prima para novos produtos, sem a necessidade de extrair novos recursos da natureza ou se existir uma cadeia de reciclagem estruturada faz sentido. Caso contrário, a marca só estará solucionando uma parte do problema.

4) Vegano – Com o crescimento do movimento de alimentação vegetariana e vegana, cresce o número de marcas de roupas e acessórios se posicionando como veganos (produtos sem nenhuma matéria prima de origem animal). Mas da mesma forma que a comida vegana não é sempre sinônimo de saúde, um produto vegano não é garantia de “sustentabilidade”, impacto zero ou preservação total da natureza. É importante entender qual é a alternativa ao produto de origem animal que está sendo proposto. Geralmente a substituição se dá por produtos que também causam muito impacto negativo no pré e no pós consumo, como couro sintético e o plástico. É importante observar e procurar entender os impactos destes produtos (na tentativa de salvar um boi e não fazer uma jaqueta de couro, tem marca propondo jaqueta de plástico que prejudica espécies marinhas).

5) ODS – Tenho visto muitas marcas comunicando suas estratégias de sustentabilidade em cima dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Mas são poucas que têm de fato estratégias, investimento e formas de medir e acompanhar resultados. Sempre que vejo um caso desses eu tenho vontade de perguntar: qual a estratégia contínua, a verba destinada a cada ODS e qual foi o resultado obtido no último ano, além da meta para os próximos anos. Se inspirar nas ODS é muito legal, mas é preciso haver seriedade para não descredibilizar o movimento.

6) Compensação – A filosofia do Capitalismo Consciente disseminou a ideia de que as empresas devem ajudar a curar algum problema do mundo. E que elas devem desejar ser prósperas desde que tenham um propósito e gerem algum valor para o planeta. Assim surgiu uma grande onda assistencialista de ações ambientais e sociais – como a compensação de carbono, plantação de árvores, doações de roupas e até mesmo comida – atreladas ao consumo. Tudo isso é bastante legal. Sendo feito de forma séria, contínua e responsável, gera impactos positivos para o planeta. Mas é importante procurar entender quais outras iniciativas ambientais e sociais são tomadas pela marca. Analisar se de fato existe uma intenção em rever os processos e minimizar impactos negativos no início da cadeia produtiva (cuidando de fato das pessoas ou planeta), caso contrário, serão apenas ações paliativas para aliviar a consciências de danos causados.

 

Não posso negar que existe muita gente (e marcas) se movimentando, tentando descobrir e experimentar novos caminhos. A busca pela sustentabilidade é uma longa jornada, que precisa começar de alguma forma. Muitas dessas iniciativas listadas acima podem sim ser genuínas, podem representar o início de um processo, uma transição. A intenção aqui não é invalidar quem está querendo melhorar e muito menos desconsiderar quem age de forma verdadeira.

Porém, é muito importante entender – e questionar para fazer as marcas entenderem – que a mudança precisa ser sistêmica, deve considerar os impactos dos processos como um todo. Cada escolha acima apresentada gera uma reação que precisa ser levada em conta. Toda iniciativa pode ter um lado positivo e negativo. O “consumo consciente” precisa deixar de ser vendido como algo que não gera impacto negativo, ou como algo que salva o mundo.

Ao comunicar suas iniciativas, uma marca precisa estar preparada para estes questionamentos. E as pessoas precisam se acostumar a questionar. Consumo consciente não é uma responsabilidade somente de quem faz ou de quem consome. É um processo de corresponsabilidade. Somente assim conseguiremos entender quem de fato está atuando para disseminar uma nova consciência e quem está apenas querendo surfar uma onda (cheia de peixes com microplásticos na barriga).

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