

Opinião
Conservar o quê?
O que realmente significa pedir a manutenção da ordem social em nosso país?


Hoje me peguei pensando sobre o que, afinal, os chamados conservadores tanto desejam conservar. Algumas hipóteses me parecem óbvias. Suas vantagens econômicas em relação à maioria das pessoas? Faz sentido, mas também existem conservadores pobres, que não gozam de nenhum privilégio em relação aos seus semelhantes. Fui consultar a Larousse – sim, ainda conservo enciclopédias e livros de papel, muitos deles! – e encontrei um conceito bastante exíguo: “Que ou quem é partidário da manutenção da ordem social estabelecida”. Nesse sentido, o conservador, rico ou pobre, seria apenas o oposto do anarquista.
A definição enciclopédica não me contenta. Muitas coisas podem – e devem – mudar em relação à “ordem social estabelecida”. Situações injustas, como as diferenças gritantes entre o “andar de cima e o de baixo”, como diria Elio Gaspari. Imagino que, para os conservadores, não basta manter sua posição social e, em muitos casos, seus privilégios. A nostalgia dos “bons e velhos tempos” talvez seja herança da escravidão da qual não chegaram a desfrutar – já que estou me referindo a conservadores contemporâneos –, mas que, talvez, não considerem uma má ideia.
Que moleza! Bastava mandar navios à África para capturar, como animais, os nativos jovens e fortes e trazê-los para trabalhar em regime de servidão no Brasil. Muitos não resistiam à longa viagem: morriam de desnutrição ou acometidos por diversas doenças, em razão das precárias condições nos porões dos navios negreiros. No desembarque, os sobreviventes – com frequência separados de seus familiares, também escravizados – estavam fadados a trabalhar até a exaustão, subalimentados e sob o chicote. A morte estava sempre à espreita nas lavouras e nos engenhos de cana. “Ossos do ofício”, diriam os captores, os donos de escravos e todos aqueles que se beneficiavam do regime escravocrata.
Não pretendo nem sou capacitada a dar uma aula sobre a escravidão no Brasil. Voltemos ao tema da coluna: o conservador, de boa ou má-fé, gosta que cada coisa – ou pessoa – permaneça em seu suposto lugar. Na verdade, se tiver poder, essa predileção se transforma em exigência.
Quando o governo Lula criou o sistema de cotas, para possibilitar que descendentes dos antigos escravizados tivessem a oportunidade de cursar uma universidade, o pessoal do “andar de cima” chiou. O mínimo sinal de ascensão social parecia soar como uma afronta. Certa vez ouvi, na fila de embarque de um avião, uma senhora de “boa família” protestar: “Esse aeroporto está parecendo uma rodoviária”. Pobre madame… pobre de espírito, claro! Perdera o gostinho de frequentar um lugar até então inacessível à ralé, que talvez devesse se contentar com viagens de ônibus.
A Uerj, em 2003, e a UnB, em 2004, foram as primeiras instituições de ensino superior a adotar políticas de cotas raciais. Em 2012, Dilma Rousseff sancionou a Lei 12.711, que reserva 50% das vagas em universidades federais para estudantes egressos de escolas públicas, respeitando a proporção de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência existente em cada estado. Em 2023, Lula atualizou a legislação, incluindo os quilombolas entre os beneficiários das cotas.
Essas ações afirmativas permitiram que brasileiros de menor renda pudessem estudar além da educação básica e, com isso, tivessem acesso a oportunidades de trabalho antes restritas aos endinheirados. A consciência de que a universidade poderia lhes abrir portas motivava os cotistas a estudar muito. O saudoso professor Antonio Candido contou que, com frequência, os cotistas eram os melhores alunos. Sabiam o valor da oportunidade que o governo Dilma lhes franqueara, e não a desperdiçavam.
Antes de encerrar a coluna, voltemos à pergunta inicial: o que, afinal, os conservadores tanto desejam conservar? Não basta dizer que seriam “seus privilégios”. Os cotistas, muitos deles descendentes de africanos escravizados, não retiraram os privilégios de ninguém. O “andar de cima” continuou a ter acesso ao ensino superior e às melhores oportunidades.
Os privilegiados sabem que nada lhes foi tirado com a ascensão social dos mais pobres. Nada, exceto… suas prerrogativas de abusar deles. Talvez seja exatamente isso que não perdoam: um povo educado passa a cobrar remuneração justa, a exigir direitos. À época da aprovação da PEC das Domésticas, por exemplo, a socialite Danuza Leão disse não considerar justo que a serviçal de uma amiga encerrasse o expediente após oito horas de trabalho e fosse para casa, como manda a lei. O direito da moça colidia com o direito da amiga de tomar, à noite, o chá de que tanto gostava. Esse comentário dá uma boa pista do que, afinal, a turma tanto deseja conservar. •
Publicado na edição n° 1357 de CartaCapital, em 16 de abril de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Conservar o quê?’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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