Rodrigo Faria G. Iacovini

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Doutor em planejamento urbano e regional pela FAUUSP, coordenador da Escola da Cidadania do Instituto Pólis e assessor da Global Platform for the Right to the City. Foi coordenador executivo do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU) e assessor da Relatoria Especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada.

Margareth Matiko Uemura

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Mestre em planejamento urbano pela PUCCAMP, coordenadora do Instituto Pólis e da rede BrCidades.

Opinião

Conselho Nacional de Justiça recomenda suspensão de despejos coletivos

Será que o Judiciário finalmente entendeu que suspender despejos é combater a pandemia?

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil.
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Nada é tão urgente hoje quanto a manutenção de medidas de isolamento social. Enquanto o ritmo da vacinação ainda é lento e a nova cepa do coronavírus se mostra mais contagiosa e requer maior tempo de internação, as medidas de afastamento e de proteção continuam sendo os principais recursos para evitar ainda mais mortes do que as 250.000 registradas no País.

Para ficar em casa, contudo, as pessoas precisam ter casa. E também não podem ser despejadas. O que parece óbvio ao senso comum demorou mais de um ano para ser declarado pelo judiciário brasileiro. Depois de meses de mobilização e pressão por parte da sociedade civil brasileira, finalmente nesta semana o Supremo Tribunal Federal e o Conselho Nacional de Justiça parecem ter despertado para essa realidade.

Desde os primeiros momentos da crise sanitária no País, entidades e movimentos que lidam com a questão habitacional alertam para a necessidade de suspensão de despejos e remoções como medida de saúde pública. Ainda em março de 2020, o Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU), juntamente com o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e a Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA), lançaram um dos primeiros apelos pela suspensão.

Se sucederam a isso diversos documentos, notas técnicas, recomendações, projetos de lei e outras iniciativas nos mais diversos cantos do Brasil, todas na intenção de garantir a moradia adequada da população de baixa renda ocupante de imóveis ou ameaçadas de despejos. Uma excelente compilação vem sendo feita pelo próprio IBDU em seu website, a qual congrega, por exemplo, dezenas de decisões judiciais que acataram tais apelos.

A sensibilidade no poder judiciário à crise humanitária, no entanto, é seletiva. É verdade que alguns magistrados têm suspendido remoções e despejos, negando pedidos de liminares e inclusive se abstendo de pedir a execução de mandados de reintegração de posse já expedidos. Até mesmo alguns tribunais se mostraram em algum momento sensíveis ao tema, como no caso da Bahia, do Paraná e de Pernambuco.

Apesar desses esforços, crescia a pandemia do coronavírus ao mesmo tempo em que se acelerava a epidemia de despejos e remoções. Essas iniciativas não estavam sendo, portanto, suficientes para assegurar condições adequadas de moradia e isolamento.

Conscientes da necessidade de uma ação em escala que fizesse frente à onda de despejos que assolou o País, foi articulada em março de 2020 a Campanha Despejo Zero.

Com o lema “em defesa da vida no campo e na cidade”, a campanha conta com a participação de dezenas de movimentos populares nacionais (como MST, MTST, CMP, UNMP, CONAM, MLB, MNLM, MAB, etc.), organizações da sociedade civil (Habitat para Humanidade, Terra de Direitos, CDES, Instituto Pólis, entre outras), redes (como o BrCidades, FNRU, Observatório das Metrópoles, IBDU), dentre outros. Sua efetiva atuação tem possibilitado o único levantamento de dados nacional sobre despejos e remoções no país, o qual identifica que, entre março e fevereiro de 2021, ao menos 9.156 famílias foram despejadas de suas casas e outras 64.546 famílias encontram-se ameaçadas de serem removidas a qualquer momento.

Em um cálculo conservador de 4 pessoas por família, isso significa que 36.624 pessoas já foram despejadas e mais 258.184 encontram-se ameaçadas.

Para se ter uma noção da ordem de grandeza, dentre os 5.570 municípios brasileiros, 4.628 deles têm população menor do que 36.624 habitantes, de acordo com dados do IBGE.

Em menos de um ano, o Brasil despejou o equivalente à somatória da população dos seus 28 menores municípios: Serra da Saudade, Borá, Araguainha, Engenho Velho, Oliveira de Fátima, União da Serra, Uru, Cedro do Abaeté, Anhanguera, Santiago do Sul, Miguel Leão, Nova Castilho, Porto Vera Cruz, Jardim Olinda, Cachoeira de Goiás, André da Rocha, São João da Paraúna, Carlos Gomes, Grupiara, Chapada de Areia, Lajeado Grande, Flora Rica, Montauri, Tupanci do Sul, Senador José Bento, Santana da Ponte Pensa, Paial, Guabiju. Todos eles teriam sido completamente esvaziados e seus habitantes deixados à própria sorte, à mercê do coronavírus.

A resolução desse cenário desolador somente é possível com uma atuação em larga escala, tendo sido nesse sentido que diversos integrantes da campanha buscaram sensibilizar e pressionar o Conselho Nacional de Justiça para que recomendasse aos atores do Judiciário brasileiro a suspensão de despejos e remoções. Além da sociedade civil, Defensorias Públicas e Ministérios Públicos apoiaram esta demanda, a exemplo da Procuradoria Federal dos Direitos dos Cidadãos, que solicitou ao CNJ ainda em março de 2020 que emitisse recomendação que indicasse “medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus – Covid-19 – por meio da suspensão do cumprimento de mandados de reintegração de posse coletivos em áreas urbanas e rurais”.

Diante da morosidade do Conselho em adotar as medidas cabíveis, a campanha buscou, de um lado, pressionar os tribunais de justiça e juízes individualmente; e, de outro, ampliar a mobilização social em torno do tema, nacionalmente e internacionalmente.

Foram abertos canais de diálogo com organismos internacionais da ONU, como o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, tendo a Alta Comissária, Michelle Bachelet, se pronunciado oficialmente sobre a preocupante situação brasileira.

O Relator do Conselho de Direitos Humanos da ONU para o Direito à Moradia Adequada também se pronunciou a respeito após reunião com integrantes da campanha, tendo ainda buscado dialogar com o governo brasileiro sobre o tema. No Dia Mundial do Habitat, foi realizada uma campanha no twitter para conscientização da situação dramática vivida aqui, tendo atingido mais de 1,4 milhões de pessoas no mundo todo.

Mesmo assim, passaram mais 5 meses para que o CNJ finalmente se pronunciasse sobre o assunto nesta semana. Na sessão do dia 23 de fevereiro, o Conselho aprovou uma recomendação aos magistrados para que evitem despejos e remoções coletivas enquanto perdurar a pandemia. Embora ainda se trate de uma recomendação que aconselha cautela, trata-se de um avanço institucional na luta pela segurança de centenas de milhares de pessoas ainda ameaçadas de despejo. Os ativistas que se encontram diariamente envolvidos na defesa dessas famílias contam agora com um respaldo importante na argumentação em tribunais de justiça estaduais.

A argumentação é fortalecida também pela decisão do STF no âmbito da ADPF 742, proposta pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), Educafro e Terra de Direitos, integrante da Campanha Despejo Zero, com objetivo de proteger comunidades quilombolas.

A partir de voto divergente apresentado pelo Ministro Edson Fachin e acompanhado pela maioria dos outros ministros, foi acatado também no último dia 23 o pedido de suspensão dos processos judiciais relativos à posse e à propriedade de territórios quilombolas até o término da pandemia.

Por mais tardias que sejam tais iniciativas, ainda vêm em tempo de fortalecer a reivindicação de permanência das famílias ameaçadas. A crise de despejos está, contudo, longe de ser resolvida, sendo agravada agora no início de 2021 pelos reajustes de aluguel em mais de 25%, diante da alta apresentada pelo Índice Geral de Preços – Mercado (IGP-M), da Fundação Getúlio Vargas.

Continuaremos a enfrentar individualmente muitos casos, sendo por isso importante que o Congresso Nacional também assuma sua responsabilidade e aprecie os projetos de lei que tramitam solicitando a suspensão de remoções no período da pandemia, os quais se encontram em regime de urgência desde maio do ano passado. Infelizmente, a noção de urgência do Judiciário e do Legislativo brasileiros parece ser bem diferente da urgência vivida pelas centenas de milhares de famílias brasileiras cuja vida se encontra em risco.

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