Opinião

Comparação impossível

O Brasil não é a Itália, e o nosso Exército de ocupação não é o grande conselho do Partido Fascista, único na ditadura sem hipocrisia

Fim do enredo na Piazzale Loreto, em Milão. Foto: COLLECTION ROGER-VIOLETT/AFP
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Recordo o dia 24 de julho de 1943, da queda de Mussolini do seu trono no Palácio Veneza, quando eu já pisava o solo terrestre. Como se sabe, alguns intelectuais nativos apreciam comparar Jair Bolsonaro ao ditador italiano, provavelmente trata-se dos mesmos habilitados a enxergar em Cesare Battisti um herói da liberdade democrática. O Duce tinha empurrado a Itália em um beco sem saída desde o momento em que acertou sua aliança com a Alemanha de Hitler. Tratava-se de um gesto oportunista, ele alimentava a certeza de que o exército alemão venceria a guerra inevitável que já se alinhava no horizonte. 

Há quem tenha descoberto um Correio da Manhã de 1937, em que se anunciava a solicitação peremptória de Mussolini de mobilizar de armas em punho o povo italiano. Olha aí as coincidências… De verdade, o Duce avisava que mais um conflito mundial aconteceria a curto prazo, enquanto o premier inglês, Neville Chamberlain, apoiado no seu inseparável guarda-chuva, preparava-se para ir a Munique, onde se chocaria com a granítica intransigência de Hitler. De fato, ensaio do conflito global seria a guerra da Espanha, que contou com o apoio de contingentes e aviões italianos. 

A aliança alcançava outros campos de ação: por exemplo a adesão às leis racistas baixadas pelo nazismo. A perspectiva bélica para a Itália era sombria, já que, com exceção da Marinha, a península não estava equipada para a guerra da Infantaria e dos ares. Mussolini corria riscos e pareceu evidente que ele os percebia quando um dos líderes da Marcha sobre Roma, determinante para levá-lo ao poder, Italo Balbo, foi morto em 1941 pelo fogo amigo de mira perfeita no céu de Tubruk, quando comandava a Força Aérea deslocada na Líbia. Mussolini sabia que Balbo figurava entre os conspiradores que mais tarde o derrubariam. 

 

No topo do poder fascista havia um Grande Conselho, integrado pelas principais figuras do governo ditatorial. Na esteira do exemplo de Balbo, o Conselho, reunido extraordinariamente, dois anos depois, levou à votação uma moção de Dino Grandi, fadada a funcionar como no regime parlamentarista um voto de desconfiança, naquele dia que me volta à memória. A moção foi aprovada e Mussolini saiu preso do palácio e imediatamente remetido para o cárcere duro em uma fortaleza apenínica. Uma comissão de representantes do Conselho entregou o poder ao rei Vittorio Emanuele III, para decidir o rumo a seguir.

O soberano convocou a seu lado o general Pietro Badoglio e ambos cometeram um erro fatal, enquanto os integrantes do Conselho se dispersaram e alguns embarcaram em um avião que os esperava. Entre eles Dino Grandi. Munido de documentos falsos e acompanhado pela mulher e os filhos, veio para São Paulo, onde viveu por mais de um ano em um sobrado da Avenida Cidade Jardim. Frequentemente vinha de pijama e pantufas à casa dos meus pais, a pé pela Rua Iguatemi, que ainda não era Faria Lima, para deslumbrar as minhas noites com suas evocações da conspirata, bem como reminiscências do tempo em que fora embaixador em Londres e se tornara amigo de Winston Churchill. 

Em lugar de optar pelo armistício com os aliados, cujas tropas começavam a invadir a Itália, o rei levou quase dois meses para dar o passo decisivo, ao oferecer às tropas nazistas a oportunidade de ocupar os territórios ainda não invadidos. Graças ao armistício, o exército italiano estava desmobilizado. O Duce foi libertado por um comando nazista e conduzido ao Norte da Itália, onde a Resistência lutava contra alemães e fascistas. Conduzido a Milão, o ditador fundou a chamada República de Salò, apoiado pelas tropas nazistas e pelos fascistas fiéis.

Um dos seus primeiros atos de comando foi precipitar o fuzilamento de traidores do Grande Conselho que estavam presos no cárcere de San Vittore, o genro Galeazzo Ciano, que fora seu ministro do Exterior, e o general Emilio De Bono, também ele, como Balbo, um dos quatro líderes da Marcha sobre Roma. Ciano morreu, ao encarar o pelotão de fuzilamento, gritando “viva a Itália”.

Menos de dois anos após, Mussolini seria fuzilado pelos guerrilheiros juntamente com a amante, ao se dirigir para a fronteira com a Suíça, onde pretendia obter asilo. Consta que carregasse um tesouro jamais encontrado. Seu cadáver foi pendurado de cabeça para baixo em uma bomba de gasolina de uma praça milanesa ao lado da amada, Claretta Petacci, e de mais seis figurões do Partido Fascista.

Dino Grandi, autor da Moção Fatal, refugiou-se em São Paulo por um ano e deslumbrou minhas noites com suas evocações

O nosso presidente da República, entreguista do Brasil e do seu próprio poder depositado nas mãos do exército de ocupação, não corre aqueles riscos, e não os correrá enquanto o general Heleno e um grupo numeroso de estrelados garantirem a sua presença no Planalto. Entre outros pecados capitais atribuíveis a Bolsonaro aninha-se seu comportamento no caso da pandemia que nos açoita. A mídia mundial já elegeu os vilões desta situação, o presidente Trump, o premier britânico Johnson e, com destaque especial, Bolsonaro, apontado como o primeiro responsável pela transformação do País em epicentro da praga. É certo que ele contribui para a hecatombe e o mundo, como de hábito, se curva. 

Assim não é o único culpado, outro é o nosso atraso de terra medieval, sem nação e sem Estado Democrático de Direito, onde a casa-grande e a senzala continuam de pé. Se o iluminista francês Montesquieu pudesse milagrosamente observar o Brasil atual, cairia, no mínimo, em profunda depressão. Tadinho do Montesquieu, aquele que nos ensinou a estrutura política indispensável à democracia, a presença de três poderes distintos e soberanos, Executivo, Legislativo e Judiciário. A rigor, faltam desde sempre. Ouvimos agora o eco dos pedidos de impeachment de Bolsonaro, que chovem de alguns cantos.

Vejamos: o Executivo é fardado, o Legislativo, comandado (?) por Rodrigo Maia, um político amedrontado pela própria sombra, sobraria a tarefa para o Judiciário, conforme alguns analistas asseveram. Mas que Judiciário é este, representado por uma alta corte (?) que tudo permitiu sem pestanejar desde os desmandos da Lava Jato.

Extraordinária a reflexão recente de Gilmar Mendes, dono de uma personalidade que por muito tempo se impôs no STF. Diz ele que a situação do momento, turva e irremediavelmente antidemocrática, decorre da operação de Moro e Dallagnol. É tarde, muito tarde, para certos reconhecimentos. O Supremo (?) foi conivente com toda a sequência de golpes a desaguar na ilegítima eleição de Jair Bolsonaro, depois das revelações irrecorríveis do site The Intercept, o enredo invalida todos os lances que se seguiram à condenação sem provas de Lula.

Tudo o que se deu desde a Lava Jato é ilegítimo. Mas o Brasil fala impunemente de próximas eleições como se vivêssemos uma total normalidade. Desconfio que seja esta a “normalidade à brasileira”, para todo o sempre, e que o STF vai capitular em breve.

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