Opinião

assine e leia

Como vejo o Brasil

Um País à espera das eleições

Como vejo o Brasil
Como vejo o Brasil
(Fotos: Elineudo Meira/ @fotografia.75/Fotos Públicas)
Apoie Siga-nos no

Eu olho para o Brasil com os olhos do passado. Em certo sentido, não existe presente nem futuro, só existe o passado. Julgo que é isso que o romancista americano William Faulkner quis dizer quando escreveu que “o passado não existe. O passado não é sequer passado”. Sempre gostei dessa perspectiva, a de que o presente é um conjunto de impressões que o passado nos deixou no espírito, e que o futuro também não é outra coisa senão a projeção para a frente dessas experiências passadas. Assim, só o passado existe. E se o Brasil é o país do futuro é porque tem um passado recente tão poderoso que coloca Lula à frente nas sondagens. É isto que quero dizer.

A propósito de passado, acabei de ver o filme Marighella e lá veio de novo o passado. Sempre senti uma certa nostalgia por aquelas épocas de combate às ditaduras em que se fazia política com perigo de vida – ou tudo ou nada.

Pela minha parte sempre fiz política em democracia, sempre fui um social-democrata, um político da esquerda moderada, um adepto do compromisso e do diá­logo. Sempre aprendi a respeitar o adversário político e até, às vezes, a admirá-lo. Nunca me vi na posição de enfrentar o dilema moral da luta armada, no que esta significa de recurso à violência política em nome da liberdade. Nunca vivi momentos de tamanho desespero, em que sentisse que não havia outra alternativa. Talvez por isso goste de refletir sobre esses dilemas radicais, de ler sobre isso e ver filmes sobre isso. Também as ciências sociais não resistem a deixar de lado a rotina e a normalidade da vida social para se dedicarem ao estudo dos momentos de exceção. A minha geração, porventura demasiado enfeitiçada pela literatura freudiana, sempre achou que a verdade se pode encontrar no sonho, no lapso e na loucura. Seja como for, o filme puxa-nos para esses momentos de dilemas morais extremos. Esse é um dos lados bonitos do filme.

JOSÉ SÓCRATES: Engenheiro e político português. Foi secretário–geral do Partido Socialista de 2004 a 2011 e primeiro-ministro de Portugal de 2005 a 2011. Escreve quinzenalmente para CartaCapital.

Depois, os atores são excelentes. Que elenco extraordinário. Todos eles, mas em especial Seu Jorge, que interpreta ­Marighella. E o polícia, o esbirro do regime, também é um formidável ator. Que personagens. Que história. Mas o filme comete a heresia de querer discutir esse passado de violência que o Brasil tinha confortavelmente arquivado na história como um mero episódio de terrorismo. De um lado, o passado de opressão e de miséria e, do outro, o passado de certezas históricas e de convicções que não admitiam sequer discussão – o bem e o mal. Depois vejo o realizador numa entrevista televisiva e todo o passado do Brasil vem de novo a galope – não o passado de despotismo, mas o da coragem. O artista, agora realizador, chega vitorioso ao programa. E a vitória que construiu é qualquer coisa nova, qualquer coisa de singular, qualquer coisa que premeia a valentia contra a aquiescência e que, talvez por isso, a exibição do filme mereça um dia ser falada e, dessa forma, fazer parte do passado. Só amamos as vitórias difíceis.

Nesse tempo histórico, o filme ­Marighella é uma escolha de dissidência. Uma escolha de quem aprecia a estética da ruptura e não segue o que é fácil, nem o cálculo à carreira. Uma escolha de quem detesta o igual – “o inferno do igual”. Já na Tropa de Elite me tinham surpreendido as análises dos que acharam que o filme, e em particular o personagem do Capitão Nascimento, fazia a apologia da tortura. Nada disso. O filme é sobre a violência e a escalada da violência. A lei e a delinquência unidas pela mesma moral de crueldade e barbárie. A sua réplica, Tropa de Elite II, pareceu-me um pedido de desculpas. Enfim, não nos percamos noutros temas – o que quero dizer é que, quando me perguntam como vejo o Brasil, o que me vem ao espírito são esses exemplos de coragem e desassombro. O ator “consagrado” que decide fazer um filme “maldito”. Há esperança.

A POLÍTICA BRASILEIRA PARECE QUERER NORMALIZAR A VERGONHA E O FRACASSO

Para não dizerem que não falei das flores, ou que não falei da atualidade (que estou sempre a comparar com o passado que testemunhei), tenho a dizer que também a mim me parece, como a todos os que acompanham de perto a política brasileira, que o Brasil perdeu a confiança do mundo. Não a confiança no mundo, mas a confiança do mundo. O Brasil é agora um país que retrocede nas preocupações ambientais. O Brasil é agora um ­país que normaliza as personagens de opereta. Um país que dá destaque à entrada na política do farsante, que, disfarçado de magistrado, não passava de um ativista político. Um país que tenta esconder o que esse episódio significa de hipocrisia, de cinismo – e de covardia. Um país que normaliza a inflação, a alta do dólar, o problema fiscal, o regresso da fome, a crescente desigualdade social, a falta de investimento público em saúde e educação. A política brasileira parece querer normalizar a vergonha e o fracasso.

Por outro lado, o “complexo de ­vira-­lata” parece ter regressado com força à política externa brasileira. Esta parece ser a eterna tragédia brasileira, a de quem não tem consciência de si próprio e do que representa no palco mundial. De quem não entende a importância de uma potência de mais de 210 milhões de habitantes. De quem não aspira a nada, de quem nada pretende, de quem nada ambiciona e de quem se conforma com a irrelevância. Isolado do mundo quando nega o desmatamento amazônico, isolado do mundo quando promove o regresso dos militares à política, isolado do mundo quando o presidente incentiva o seu povo a não se vacinar. O isolamento do mundo é a desgraça brasileira, mas é também a desgraça de quem fala português.

O Brasil é muito melhor do que quem o governa. Lula ao lado de Scholz: o mundo reconhece sua liderança

Entretanto, o jogo político prossegue em palco tentando dar algum sentido racional ao teatro do absurdo. A direita, que se pretende democrática, procura por todos os meios resolver o embaraço em que está mergulhada, tentando selecionar alguém que se apresente com possibilidades de passar ao segundo turno da eleição presidencial. O problema é que não tem base social. A chamada terceira via não tem existência política, porque se suicidou quando apoiou o golpe parlamentar contra a presidenta Dilma Rousseff e quando instrumentalizou a Operação Lava Jato contra o Partido dos Trabalhadores. A direita abriu as portas do inferno e pouco lhe resta senão beber o cálice até ao fim.

Na verdade, o que as sondagens mostram não é apenas a espetacular vitória de Lula da Silva, mas também que a direita social prefere Bolsonaro a qualquer outro. Depois da tentativa de ­impeachment de juízes, depois do episódio caricato dos tanques na rua, depois das ameaças explícitas de golpe, o presidente goza ainda de um apoio nas sondagens que não deixa outra alternativa de entendimento – a direita social no Brasil sente-se bem representada no governo. Tem horror à igualdade social e olha para a ditadura com nostalgia. Não há outra forma de o dizer – a sociedade brasileira normalizou a extrema-direita no poder.

LULA NÃO É UM POLÍTICO DO PASSADO, MAS UM POLÍTICO COM PASSADO

Mas, se o jornalismo e algumas outras instituições tentam normalizar a política brasileira, o mundo não a normaliza. Lula da Silva fez uma viagem pela Europa e foi recebido pelas principais lideranças políticas, entre as quais o novo chanceler alemão. As universidades europeias convidam-no para fazer conferências e os norte-americanos tomam as devidas distâncias relativamente ao atual governo brasileiro. Sabem que o futuro está próximo. E sabem também que esse futuro teve um passado que está ainda fresco na memória dos brasileiros e fresco também na memória do mundo político. Um passado em que os jornalistas não eram agredidos, as instituições consideradas e os adversários respeitados. É nesse passado que penso quando me perguntam como vejo o Brasil. Lula não é um homem do passado, mas um homem com passado. Um passado que resistiu à agressividade da imprensa, à parcialidade do aparelho judicial e à intimidação dos militares. Um passado de governação bem-sucedida. Um passado de ímpar transformação social conseguida na distribuição de riqueza, nas oportunidades educativas, na redução das desigualdades, na inclusão social, na afirmação do Brasil como nova voz na cena da política internacional. Um passado político de quem nunca abusou dos seus poderes, nunca limitou nenhum direito da imprensa, nunca ameaçou nenhum opositor. E um passado que, em circunstâncias dificílimas, ficou de pé nas últimas eleições presidenciais – 47 milhões, vários governadores eleitos e a maior bancada do Congresso. E ainda a dignidade com que Fernando Haddad se entregou à luta política.

É nesse passado que penso quando me perguntam como vejo o Brasil. Vejo um país de artistas corajosos, um país de jovens com ambição, um país de gente generosa e alegre que sabe que é muito melhor do que o que está à vista. Como olho para o Brasil? Como um país à espera das eleições. Como um país à espera de uma mudança política. Como um país à espera do seu povo. E quando o povo falar vai-se ouvir longe. Feliz Ano-Novo. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1189 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE DEZEMBRO DE 2021.

CRÉDITOS DA PÁGINA: DOWNTOWN FILMES E GLOBO FILMES, U.S. LIBRARY OF CONGRESS E REDES SOCIAIS – RICARDO STUCKERT E NELSON ALMEIDA/AFP

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo