Justiça

Como recuperar nossa soberania na escuridão do tempo presente?

Não há como contemporizar com a série de absurdos e retrocessos diários em curso no país nos últimos anos

(EVARISTO SA / AFP)
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O argumento de quem elevou Sérgio Moro à condição de super-herói do país sempre foi o combate à corrupção, uma questão moral. Poucos admitiram apoiar pautas xenofóbicas, racistas ou claramente orientadas à eliminação de pessoas que pensem diferente.

Mesmo este ano, os entrevistados nos tímidos atos em favor do atual governo repetiram o mantra: “não queremos mais corrupção, queremos um país melhor”. Com esse discurso, até mesmo as conversas travadas por Moro, tarde da noite, com Dallagnol e outros Procuradores, estão sendo perdoadas, em nome de um bem maior: colocar corruptos na cadeia. 

Não discuto o fato de que esse argumento sequer resiste à análise superficial da atuação do super-juiz, agora super-ministro. FHC não foi investigado. Aécio Neves e Temer não estão presos. Isso, por si só, deveria bastar. Não bastou. Também não foi suficiente lembrar que embarcamos no mesmo discurso seletivo e estúpido, quando elegemos Collor, o “caçador de marajás”. O governo de Collor se apropriou do dinheiro dos “cidadãos de bem” que o elegeram, mas nem isso serviu para que entendêssemos que o falso combate à corrupção é a forma mais sedutora e antiga de fazer com que assumamos escolhas imbecis.  

Na atual quadra da nossa história, o ódio cego contra o PT, minuciosamente construído nos últimos anos, através da retórica de que apenas esse partido pratica corrupção, teve o efeito de obscurecer todo o resto. A prisão de Lula foi praticamente um ato de redenção desse discurso. O candidato preferido nas intenções de voto para a eleição de 2018, foi tempestivamente segregado, impedido de dar entrevistas, de comparecer ao velório do irmão; foi escoltado para o velório do neto em que pode ficar apenas por 1h30min e retirado do páreo a tempo de evitar “o pior”: qualquer coisa para que o PT não voltasse ao governo.

Até mesmo hoje, após todas as revelações que demonstram a ilicitude dos procedimentos que resultaram a prisão de Lula, reina um silêncio ensurdecedor, uma omissão coletiva que não pode ser explicada senão por essa distorção do discurso moral. Lula segue preso. Moro segue à frente do Ministério da Justiça. O requerimento de investigação contra Dallagnol foi arquivado. 

É claro que as práticas de corrupção, inclusive dentro do PT, contribuíram fortemente para a construção desse imaginário coletivo. Mesmo assim impressiona a dificuldade que se tem em admitir o óbvio: Sérgio Moro, Deltan Dallagnol e seus comparsas nunca preocuparam-se seriamente em combater a corrupção. A operação lava-jato tornou-se um verdadeiro parque de diversões para atitudes corruptas, orientadas para a obtenção de vantagens pessoais. As últimas informações trazidas pelo Intercept em parceria com a Folha de São Paulo corroboram isso.

E não foi apenas Dallagnol a buscar vantagens pessoais. Sergio Moro obteve inequívoca vantagem com todas as manobras que fez para conduzir a operação lava jato. Embora em 2016 ele tenha negado qualquer possibilidade de entrar para a política, recentemente, na sabatina do Senado sobre as conversas com Dallagnol, confessou haver sido sondado para o cargo de Ministro antes mesmo do segundo turno das eleições. Ou seja, enquanto ainda atuava como juiz responsável pelos processos ligados à operação lava jato. E não foi só isso.

Enquanto atuava como juiz, Sergio Moro vazou áudio de interceptação telefônica em que registrada conversa entre a Presidenta Dilma e Lula. Ao ser confrontado com a ilicitude da interceptação, referiu que o problema “não era a captação do diálogo e a divulgação do diálogo, mas era o diálogo em si, uma ação visando burlar a justiça”. Mais tarde, durante o processo eleitoral, a seis dias do primeiro turno das eleições, Moro retirou o sigilo do primeiro anexo da delação premiada do ex-ministro Antonio Palocci.

Durante toda a operação, determinou as ações do Ministério Público, instruindo sobre as provas a serem produzidas e, inclusive, orientando o MP a não investigar FHC. Nas últimas informações trazidas a público pelo Intercept, descobrimos que Moro determinou também o vazamento de informações para intervir na crise da Venezuela. Evidentemente, nada disso tem a ver com caça aos corruptos, muito menos com o espírito moral que se construiu em torno de um sujeito que é a antítese do super herói. 

Moro sentenciou em tempo recorde, não porque eventual prática corrupta por parte de Lula tenha ferido sua consciência e ativado nele uma vontade incontrolável de fazer justiça, mas porque tinha interesse em retirar Lula da corrida eleitoral, como também aceitou cargo na cúpula do Poder Executivo, por parte do candidato diretamente beneficiado com a prisão, cujos valores e atos, nesses primeiros meses de governo, não são exatamente uma ode à moralidade.

Aliás, foi o atual chefe de Moro quem recentemente confessou outra grave imoralidade. Moro entregou a Bolsonaro cópia de inquérito sobre candidaturas “laranjas” no PSL, que tramita em segredo de justiça, conforme bem apontou Rubens Valente, colunista da Folha.

Há muitas provas, portanto, de que Moro reiteradamente corrompeu as regras do jogo, agiu em benefício próprio e de interesses que a última notícia sobre a intervenção no caso da Venezuela revelam exceder os limites nacionais. Ainda assim, permanece no cargo agindo como canal de acesso às investigações que de algum modo podem atingir o governo. 

Um escândalo para qualquer país minimamente democrático. 

Combater a corrupção através da prática de corrupção já seria, em si, um tremendo equívoco; uma ação destinada ao fracasso. A situação do Ministro da Justiça é ainda pior, porque sequer é possível seguir defendendo sejam seus atos movidos por uma intenção genuína de combate à corrupção. À incoerência entre o discurso e a prática de Sérgio Moro, soma-se o fato assustador de que as instituições capazes de agir, diante da série de denúncias que vem sendo feitas pela imprensa, têm silenciado.

Não é por acaso que um dos principais argumentos esgrimidos pelos defensores de Moro, quando confrontados com as ilicitudes que permeiam o processo que conduziu Lula à prisão, é o de que o ex-presidente também foi condenado em segunda instância. É verdade. Moro e Dallagnol não estão sozinhos, sabemos disso.

Vimos com clareza o quanto as regras jurídicas podem ser ignoradas ou distorcidas no episódio em que Dilma foi afastada do poder, sem perder seus direitos políticos, com argumentos que não guardavam relação com crime de responsabilidade. Dois dias depois do impedimento, o governo interino de Michel Temer aprovou lei que permite as chamadas “pedaladas fiscais”, para que não houvesse dúvida acerca do caráter político do golpe jurídico-parlamentar ocorrido em 2016. 

Michel Temer (Foto: Mauro Pimentel/ AFP)

Também sentimos o gosto da distorção do sistema jurídico, quando uma lei com 11 artigos ganhou 850 emendas de setores ligados ao grande capital, virou um código empresarial votado em regime de urgência e foi colocada em prática em poucos meses, desconfigurando a legislação trabalhista e asfixiando os sindicatos. Nesse sentido, recomendo a matéria do The Intercept com o título “Lobistas de bancos, indústrias e transportes quem está por trás das emendas da reforma trabalhista”.

A distorção das regras jurídicas é uma realidade que supera, portanto, o âmbito da operação lava-jato. Mesmo assim, é preciso relembrar que a atuação de Moro na lava-jato foi determinada pela exceção desde o início. As regras sobre competência criminal foram ignoradas e Moro chegou até mesmo a desautorizar um desembargador, proferindo decisão durante suas férias, para que a liminar que determinara a soltura de Lula fosse ignorada

Quem não lembra do caso do habeas interposto durante o plantão, sobre o qual o desembargador Rogerio Favreto decidiu, de modo fundamentado? Pois a decisão não apenas foi descumprida, como o descumprimento da ordem foi chancelado pelo STJ no dia seguinte e justificado com o argumento de que Moro teria agido “com oportuna precaução” ao consultar o presidente do seu tribunal para saber se deveria ou não cumprir a “anterior ordem de prisão ou se acataria a superveniente decisão teratológica de soltura”

Faz tempo que as regras jurídicas vêm sendo ignoradas quando convém a quem detém o poder. A sessão que culminou no afastamento da Presidenta Dilma, com voto dedicado ao Comandante Ustra, condenado pelo crime de tortura durante a ditadura, talvez seja apenas o mais simbólico exemplo da ruptura democrática. 

Sabemos que as regras jurídicas são construídas enquanto aplicadas e que, sendo linguagem, também o Direito é algo vivo, que se modifica em conformidade com o tempo e com o jogo de forças do cenário político-econômico. Acontece que para podermos seguir vivendo em um Estado de Direito, algumas premissas devem ser observadas, pois a democracia não importa apenas para fazer valer a ordem do capital, permitir a troca, a produção e o consumo com um mínimo de previsibilidade. Importa também para que os problemas reais sejam debatidos e enfrentados. 

A lógica da exceção impede esse enfrentamento e promove um desvio de discurso. Enquanto membros do Poder Judiciário e do Ministério Público brincam de heróis e bandidos, revelando completo descaso pela democracia brasileira, Jair Bolsonaro segue governando por decreto, manifestando sua concordância com o trabalho infantil, fazendo apologia à exploração sexual das mulheres brasileiras ou destruindo a educação pública de qualidade, sem que esses temas sejam enfrentados com a gravidade que merecem.

Até mesmo o tão maltratado tema da corrupção merecia ser abordado com alguma profundidade, afinal tem sido utilizado ao longo de toda a história brasileira como subterfúgio para golpes de estado e distorção de discursos.

Nesses poucos meses de governo, descobrimos a existência de candidaturas “laranjas” dentro do partido do Presidente, com participação do Ministro do Turismo. Pois não apenas o ministro segue firme no governo Bolsonaro, como também Sergio Moro tem desempenhado a função de garoto de recados do Presidente, dando-lhe acesso aos termos sigilosos da investigação sobre a existência dessa prática criminosa. E tem ainda as proximidades não explicadas entre a família presidencial e os possíveis mandantes do assassinato de Mariele Franco ou o avião presidencial com 39kg de cocaína.

O atual presidente sente-se tão acima da ordem jurídica, que não vê problemas em indicar o próprio filho, sem outra experiência do que a declarada – ter fritado hambúrguer e feito intercambio – para o cargo de embaixador do Brasil junto aos EUA.

Seu Ministro do Meio Ambiente nomeou uma produtora rural sem experiência alguma, para chefiar o Parque Nacional da Lagoa do Peixe, no Rio Grande do Sul, e o fez a pedido da bancada ruralista. O parque é um dos mais importantes refúgios do mundo para centenas de espécies de aves migratórias, inclusive ameaçadas de extinção, e há tempo a bancada ruralista pressiona para que seja reduzido ou mesmo extinto. 

A PEC 06, que propõe o mais completo e visceral desmanche no sistema de seguridade social, teve seu texto base aprovado no último dia 10 de julho, com 379 votos e com as bençãos da grande mídia.

No dia 09 de julho, o governo não apenas havia anunciado que dois ministros se exonerariam por um dia da função para votar como parlamentares em favor da reforma da previdência, como também havia prometido “cortar verbas para emendas extras de deputados que prometeram votar favoravelmente à reforma da Previdência”, porque, para comprar votos, liberou cerca de 2,5 bilhões de reais para emendas de parlamentares. Esse é um bom exemplo de política corrupta, que os mais de 53 milhões de brasileiros disseram estar rejeitando nas últimas eleições.

No dia 11 de julho, o Senado aprovou o relatório da MP 881, que transforma uma declaração de princípios da liberdade econômica recheada de normas vagas em um instrumento de mais destruição das regras de proteção a quem trabalha. Apenas no campo das relações de trabalho, a proposta estabelece, entre outras coisas, limitação da aplicação da legislação trabalhista a quem ganha até 30 vezes o salário mínimo, autorização de trabalhos em domingos e feriados, possibilidade de registro de jornada “por exceção” e ausência de controle de horário no meio rural.

O fato de que vários agentes atuam para essa triste realidade revela um drama mais profundo, que não se esgota na necessária exoneração de Sergio Moro. Muitos silenciam por falta de coragem para enfrentar as forças que parecem organizadas e orientadas para o desmanche. Outros tantos endossam as atitudes corruptas e se escondem sob o argumento de moralidade, porque também praticam pequenas corrupções em seu dia a dia e se sentem mais protegidos em um ambiente no qual tais práticas não sejam contestadas. 

O fato é que está difícil evitar o sentimento de que o movimento de recrudescimento de valores e de endurecimento das teias de dominação do capital invade todos os âmbitos de convívio humano e irá determinar um retrocesso de proporções que ainda sequer conseguimos dimensionar.

Sob qualquer perspectiva de análise, se o programa de destruição colocado em curso seguir, o panorama é catastrófico. Há uma completa ausência de soberania, da noção de que devemos agir como nação.

A supressão de direitos sociais implica perda da capacidade de consumo, cuja consequência óbvia é a recessão econômica, pois sem consumo não há produção e circulação de mercadorias e serviços.

O descaso para com as riquezas naturais agravará problemas ambientais que já comprometem a possibilidade de vida no planeta. O uso da posição de poder para inocular em órgãos públicos pensamentos predatórios, aliados a uma política internacional que objetiva a completa destruição de nossa soberania terá o efeito de nos destruir como nação.

Portanto, sequer é possível falar em um projeto de Estado, ainda que ultraliberal, pois o que se realiza neste momento no Brasil é um verdadeiro saque predatório de nossas riquezas e almas, com total descompromisso pela nossa soberania. Para fazer frente a esse estado de coisas, precisamos discutir com seriedade a importância dos parâmetros de convívio social que elegemos em 1988, cujos objetivos incluem a construção de uma sociedade solidária. E exigir uma postura comprometida por parte de todos aqueles que figuram em postos de poder. Em realidade, por parte de cada um de nós.

Não há mais como contemporizar ou justificar atitudes flagrantemente descomprometidas com a construção de um estado minimamente bom para o maior número possível de pessoas. Já passou da hora de retomarmos a importância de fazer Política, no melhor sentido aristotélico, preocupando-se e ocupando-se do que é público, do que nos interessa a todos. 

Uma amiga esses dias reclamou que os seguidores do atual governo apropriaram-se da bandeira e das cores nacionais, que hoje acabaram de algum modo sendo identificadas com discursos racistas e políticas predatórias. Talvez esteja na hora de reivindicarmos a ressignificação de nossos símbolos e de nossa função, como partícipes de um país enorme, composto por uma população tão heterogênea e sofrida, quanto merecedora de atitudes solidárias e civicamente comprometidas, que recuperem um sentido plural e político de luta coletiva, para que possamos superar, através dessa luta, a escuridão do momento presente.

Este texto não reflete necessariamente a opinião de CartaCapital.

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