

Opinião
Como está a vida de Maria – mulher, negra e periférica – durante a epidemia de coronavírus
Garantir alimentação, renda, atendimento público de saúde, acolhimento e respaldo da Justiça são demandas urgentes


Há dias eu tenho andado pela periferia de São Paulo entregando cestas básicas para famílias de comunidades pobres, resultado do Fundo Solidário organizado pelo MTST. Nessas andanças, tenho visto nosso povo com os sentimentos mais variados: gente agradecida, gente confiante, gente revoltada, gente com medo.
Escolhi a história de Maria para sintetizar um pouco de várias dessas pessoas e mostrar o drama que nós da periferia estamos enfrentando. Maria representa mais de 11 milhões de pessoas que vivem em favelas e comunidades no Brasil. Com 38 anos de idade, Maria ficou feliz por receber os mantimentos da cesta básica, que encheriam a barriga de seus dois filhos, da mãe idosa e do companheiro. Sebastião faz bico de pintor na casa do bairro nobre ao lado, mas desde que começou a quarentena, não tem tido trabalho.
Até a pandemia, Maria trabalhava como diarista a duas horas e meia de transporte público de sua casa, no fundão do Jardim Ângela. Mas a família cancelou o serviço depois que a sobrinha da patroa voltou de viagem do exterior e ficou doente de Covid-19. A jovem ficou quinze dias internada num hospital de ponta no Morumbi e se recuperou.
O companheiro de Maria, Sebastião, sempre trabalhou, mas agora trancado em casa, ele começa a beber já antes do almoço. Embriagado, Sebastião fica agressivo. Ela tenta esconder os hematomas, mas sua mãe percebe. São as mesmas marcas que aumentaram em mais de 30% no último mês em São Paulo, segundo o Ministério Público Estadual.
Para sair desse ciclo de violência, o primeiro passo é conhecido: as mulheres precisam de renda e de abrigo para acolhimento emergencial, como tem feito o governo francês, que está pagando quartos de hotel para mulheres em situação de violência.
Aqui, o Congresso aprovou a renda básica emergencial de 600 reais, sendo de 1.200 para mães solo. Mas, quem está na quebrada sabe como tem sido difícil ter acesso a esse dinheiro, com a exclusão digital sendo uma realidade em nosso país e deixando cerca de 30% da população sem acesso à internet.
Se é verdade o que disse o vice-ministro da Saúde do Irã, Iraj Harirshi, que “o vírus é democrático” ao atingir a todos sem exclusão, é também verdadeiro afirmar que as conseqüências da doença não são iguais para as diferentes raças, classes e gêneros. Porque o que vemos em um momento de calamidade como esse é a desigualdade escancarada e o legado de um Estado escravocrata, que atinge quem sempre esteve mais vulnerável. Não é de se surpreender que 75% da população vivendo em miséria seja preta ou parda. Mesmo assim, os registros médicos não incluem a notificação de raça-cor nos prontuários.
E pelas precárias condições de vida e alimentação inadequada, boa parte dessa população preta e pobre tem doenças crônicas como diabetes e hipertensão, que podem tornar mais graves os sintomas da Covid-19. São as mesmas condições que fazem com que a doença mate duas vezes mais pretos e latinos em Nova York.
Diante da enorme subnotificação, pesquisadores do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde estimam que haja 225 mil casos do novo coronavírus no Brasil. E sem medidas efetivas de contingenciamento, que obrigatoriamente devem incluir o povo da periferia, esse número crescerá exponencialmente. Sem ações públicas que garantam a permanência de trabalhadores pobres e informais em suas casas, o contágio e as mortes só aumentarão.
Mas o presidente não está preocupado com a vida das pessoas. Para ele, o que importa é a roda da economia continuar girando. Para nós, o que importa neste momento é a defesa da vida. Com um olhar especial para aquelas que estão no extremo. Para as Marias.
Maria, mulher, negra e periférica – como eu e milhões de nós – sofre com a doença, a falta de trabalho, a violência doméstica… Garantir alimentação, renda, atendimento público de saúde, acolhimento e respaldo da Justiça são demandas urgentes. São as nossas vidas que estão em jogo.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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