Paulo Nogueira Batista Jr.

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Economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor-executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países

Opinião

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Como conheci Fernando Pessoa

Vale a pena saber português, só para ler o poeta no original

Foto: reprodução da biografia de Fernando Pessoa
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Hoje, quero voltar a falar do grande, do imenso Fernando Pessoa e contar como cheguei a ele. Não me critique, leitor, por passar ao largo da crise que ameaça nos levar a uma terceira guerra mundial. Convenhamos que, tout compte fait, a arte e a beleza é que dão sentido à vida.

A maneira como conheci Pessoa foi um tanto estranha. Estranha, mas de alguma forma aparentada com ele mesmo, ele que, em verso célebre e um pouco desgastado pelo excesso de citação, escreveu que “o poeta é um fingidor/ finge tão completamente/ que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente”.

Tudo começou com uma namorada que tive dos 18 aos 22 anos. Não vou dizer o nome dela, pois a estória talvez não a deixe tão bem. Vou rebatizá-la como ­Celina. Confesso que ela sofria nas minhas mãos. Em retrospecto, percebo que eu era pernóstico e pedante. (Ainda sou, dirão os meus desafetos.) Cheio de livros, filmes, citações, o efeito que eu produzia sobre ela era massacrante, intimidador. Celina era inteligente, culta e lia muito. Mas, insegura, não lidava bem com a avalanche cultural que eu desencadeava.

Um dia ela me disse, timidamente: “Sabe, eu escrevo”. Fiquei logo interessado, mas ela não queria mostrar de jeito nenhum. Mas eu insistia e insistia, e não sosseguei enquanto ela não cedeu. Acabou me trazendo certo dia um texto dela sobre um marinheiro que naufragou e, perdido numa ilha, recriou a terra natal na imaginação. Texto curto, simplesmente maravilhoso. Fiquei impressionado, mas ela me fez prometer que não mostraria a ninguém porque “não estava pronto”, “não gostava tanto do texto” etc. Abriu uma exceção apenas para a namorada do meu irmão João, chamada Denise, gaúcha linda, de olhos verdes, inteligente e charmosa, que estudava­ ­Literatura. Lembro-me tão bem do impacto que o texto causou sobre a Denise. A inveja brotou incontrolável no rosto dela. Refeita do susto, ela se pôs a fazer diversas correções e sugestões que Celina ouviu pacientemente (não estou gostando de usar um pseudônimo, mas paciência).

O tempo foi passando e eu pedia sempre a ela que escrevesse mais. Com muita relutância, ela aparecia com mais alguns textos, mas nada chegava aos pés do marinheiro naufragado. E o assunto morreu.

Anos depois, remexendo em gavetas dei de cara com o texto dela sobre o marinheiro, esquecido lá no meio de papéis. Reli. Impressionante! Mas aí pensei, com convicção: “Ela não escreveu isso”. Aí dei uma tremenda prensa nela, tão forte que ela, embora com medo, acabou confessando que não era dela, e sim de Fernando ­Pessoa! Imaturo e inseguro, fiquei revoltado. Se ela me mentia assim, como confiar em qualquer coisa que me dissesse? Sofri. Não percebia que, pelos motivos antes mencionados, eu era corresponsável pelo elaborado fingimento. Elaborado porque ela fora desencavar de dentro de uma peça de teatro não muito conhecida de Pessoa o trecho fulgurante sobre o marinheiro.

A mágoa passou. E depois de algum tempo nos divertíamos lembrando das várias correções da Denise a Fernando Pessoa!

Fui então atrás da obra dele. E passei de um encantamento a outro – Mensagem, os heterônimos Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis, O Livro do Desassossego e tantas outras obras, de poesia e prosa. Aprendi de cor, e ainda sei, vários dos seus poemas.

Alguns poucos exemplos, entre centenas. Sobre Dom Sebastião: “Sem a loucura o que é o homem, mais que a besta sadia, cadáver adiado que procria”. E aquele poema, Aniversário, de Álvaro de Campos, que começa assim: “No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, eu era feliz e ninguém estava morto”. Ou ainda aquele outro poema cintilante sobre o amor:

O amor, quando se revela,/ Não se sabe revelar./ Sabe bem olhar p’ra ela,/ Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente/ Não sabe o que há de dizer./ Fala: parece que mente…/ Cala: parece esquecer…

Ah, mas se ela adivinhasse,/ Se pudesse ouvir o olhar,/ E se um olhar lhe bastasse/ P’ra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;/ Quem quer dizer quanto sente/ Fica sem alma nem fala,/ Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe/ O que não lhe ouso contar,/ Já não terei que falar-lhe/ Porque lhe estou a falar…

Repare, leitor, que o poema começa com uma afirmação geral, espécie de tese: “O amor quando se revela…”. Mas, de repente, afunila e desce como uma águia para ela, palavra que remete a uma mulher particular, que cada um de nós irá associar a uma certa mulher, única, inconfundível.

Quem sou eu para dizer isso, mas arrisco mesmo assim: Fernando Pessoa é um dos grandes gênios da literatura mundial. Só não é mais conhecido porque escreveu em português, nossa belíssima língua, que não tem, entretanto, o impacto internacional do francês, do espanhol, do alemão e, sobretudo, do inglês. Vale a pena saber português, repito pela enésima vez, só para ler Pessoa no original.  •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1200 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Como conheci Fernando Pessoa”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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