Opinião

Como comunidade internacional, não mais transcendemos

Para que existem as fronteiras, não se sabe com exatidão, mas que existe necessidade de se olhar sobre as cercas, muros e muralhas, não se pode negar

Como comunidade internacional, não mais transcendemos
Como comunidade internacional, não mais transcendemos
Olaf Scholz Foto: Markus Schreiber / POOL / AFP
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“A vida não corresponde às nossas expectativas”

Jean-Yves Leloup

Em parte, porque viver é caminhar em direção ao universal, ao coletivo, comum. Nesse sentido, podemos avaliar: indo em direção ao outro, à alteridade, à compreensão das diferenças, vamos evoluindo.
O contrário, infelizmente, também é verdadeiro. Por um lado – e inicialmente para minha surpresa – vemos pessoas com mais idade decidirem estudar relações internacionais.
Nelas, está claramente o desejo de transcender, de ultrapassar fronteiras, imergir no mar das culturas, tão diversas quanto desafiantes de entendimento.
Por outro lado, vemos regressões assustadoras.
Neste momento, as mais conspícuas parecem concentrar-se na Europa, em que a Alemanha desponta como país mais importante, mas também em maior ritmo regressivo.
Após aparente tentativa de atentado contra o Consulado-Geral de Israel em Munique, na semana passada, o primeiro-ministro Olaf Sholz desastradamente afirmou que não havia lugar no país nem para o antissemitismo, nem para o islamismo.
Isso dito no país que, no século passado, dizimou mais de 6 milhões de pessoas em campos de concentração e fornos (sem contar os 30 milhões de russos mortos nos campos de batalha), endereçado a seguidores de uma das três religiões monoteístas, com centenas de milhões de seguidores em todo o mundo.
Alguém viu ou ouviu alguma reação a uma tamanha demonstração de intolerância religiosa?
Da empobrecida, colonizada e caricata imprensa brasileira não se poderia esperar nada – e de lá nada veio mesmo.
Mas, da ONU? Dos países ditos democráticos? Dos líderes de outras tradições religiosas, principalmente das demais religiões abraâmicas, o cristianismo e o judaísmo?
Como comunidade internacional, não mais transcendemos, não conseguimos mais olhar por sobre os muros, os guetos de muitos dos nossos grupos virtuais.
Se o Holocausto foi, de alguma forma, menos conhecido em seu momento, o horror do que ocorre em Gaza está 24 horas sob os nossos olhos – e o que fazemos? Como reagimos a esse gigante, brutal, imenso cataclismo? Como sairemos dele? Que humanidade nos terá restado? Alguma, eventualmente?
Vemos que quanto mais colonialista um país, mas restritos seus conceitos.
Por exemplo, os EUA praticamente só reconhecem os direitos humanos de seus nacionais. Dos demais, apenas os validam episodicamente, com fins políticos ou de propaganda pró-liberalismo econômico.
A morte de uma ativista turco-estadunidense na semana passada, na Cisjordânia, pelo exército israelense levou a pronunciamento do secretário de estado Anthony Blinken, asseverando que seu governo tirará as conclusões que couberem no caso da culpa do [genocida] exército [a serviço da extrema direita israelense] ficar provada.
Já as centenas de palestinos assassinados todos os dias pelas mesmas forças genocidas de Israel não mereceram nem uma palavra, um gesto, um suspiro que fosse por parte do poderoso diplomata.
Dessa forma, vê-se assimilarem-se e fundirem-se conceitos tão diversos, quais sejam os de nacionalidade e ideologia: para os EUA, são nacionais os que comungam o credo do Consenso de Washington.
Por isso, apontam o dedo para os países em que estado e ideologia também se confundem, pois seria como se desmascarassem, por espelhismo, o arranjo neoliberal, que às claras, não sobrevive, como tudo que se encerra no domínio do mal.
De fato, na estagnação parece estar mergulhada a primeira, decadente, economia.
Entretanto, como prevê a regra geral, tudo sempre pode piorar: na semana passada, Trump anunciou que, caso vença as eleições, irá contratar Elon Musk para fazer auditoria de todo o governo… O cachorro irá tomar conta das linguiças, algo assim como a relação entre o Copom, o Banco Central e os banqueiros, no Brasil. Se der um vento e as plaquinhas caírem, não se sabe quem é quem…
Em Cruzar Fronteiras – uma urgência para a ética teológica“, da editora Santuário, Emilce Cuda recorda: “Cruza-se a fronteira da responsabilidade social quando todo um continente abandona o Haiti a sua própria sorte; e quando os trabalhadores empregados rejeitam que os Estados, mediante políticas públicas – fiscais, financeiras, sanitárias e educativas -, garantam  as condições de vida digna àqueles que permaneceram desempregados estruturalmente, isto é, àqueles descartados do sistema produtivo. Cruza-se a fronteira da identidade pessoal e coletiva quando se impede, a qualquer preço, o momento da unidade na diferença – que não é o mesmo do que unidade idêntica dos totalitarismos, mas sim a identidade por equivalência das democracias”.
Na mesma coletânea, Luiz Augusto Mattos aduz: “O individualismo com contornos narcísicos leva o ser humano a um desinteresse pela vida do outro e da coletividade.”
Ainda naquela coleção, Élio Gasda, no artigo “Cruzar fronteiras conceituais para a superação do sistema do capital”, sintetiza: “É do trabalho que o capital extrai lucro”. Em apoio a essa tese, cita o Papa Bento XVI (outro alemão insuspeito de comunismo): “O homem de hoje é considerado em chave predominantemente biológica ou como capital humano, recurso, parte de uma engrenagem produtiva e financeira que o ultrapassa”.
Para que existem as fronteiras, não se sabe com exatidão, mas que existe necessidade de se olhar sobre as cercas, muros e muralhas, não se pode negar.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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