Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Como anda a vida aqui nesses 100 metros quadrados

O que será que se passa lá fora? Será que faz calor? Dizem que ‘o frio está de doer’

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1.
Só mesmo o Gregório Gruber foi capaz de tirar todas as pessoas das ruas de São Paulo. Não havia determinação, medida provisória, lei ou um pedido encarecido para que as pessoas ficassem em casa. Não havia coronavírus, pessoas usando máscaras, filas nas portas da Caixa Econômica Federal, gente assustada, plantão na televisão. Não havia uma viva alma no Viaduto do Chá, na Avenida Paulista, na 25 de Março, no Monumento das Bandeiras, lá embaixo no Anhangabaú ou subindo a Rua Augusta a 120 por hora. Não havia ninguém no cruzamento da Ipiranga com Avenida São João, sequer cenas de sangue no bar. Eram oito milhões de habitantes armados de ruge e batom e os novos baianos passeavam na sua garoa. A minha visão hoje da maior cidade da América do Sul, onde vivo, são algumas janelas retangulares que funcionam como aquelas câmaras paradas instaladas em cada esquina. Pode ter movimento, ou não. Na janela da varanda vejo uma pequena floresta e no meio dela, coloridos que sobraram da vista de um parquinho. Das janelas da sala vejo a piscina vazia do prédio ao lado, as sombrinhas recolhidas, as cadeiras espreguiçadeiras empilhadas. Da janela do escritório, vejo minha ameixeira crescendo na jardineira e ouço o barulho dos automóveis que passam na rua, que quase não enxergo. Do meu quarto é que vejo, de tempos em tempos algumas almas passando. Da janela da área de serviço dá pra ver um pedaço da piscina também esvaziada do meu prédio e me lembro da algazarra da meninada nas manhãs de domingos azuis de sol. Vou parar por aqui porque o Bruno Covas vai começar a falar na televisão e eu preciso prestar atenção.

2.
Dei pra arrumar minhas coisas. Coisas que estavam pra arrumar há dias, semanas, meses, anos. Livros, discos, gavetas, caixinhas. Cada meia hora que tenho nesse tal de home office, vou colocando uma coisa aqui, outra ali, agora higienizando tudo. Já gastei um litro de álcool e um tubo daqueles grandes de lustra-móveis. Sem contar umas três buchas, uma dúzia de paninhos e um espanador. Quanto pó acumulado nesse tempo todo, pó que não me chamava tanto a atenção porque as minhas coisas andam sempre nos lugares. De vez em quando paro e fico sentado meia hora, quando me surpreendo com uma coisa que eu tinha e nem me lembrava mais. Fico aqui me perguntando o que aquele selo da inauguração de Brasília estava fazendo dentro do livro 84 Charing Cross Road, de Helene Hanff, já meio amarelado. E aquelas anotações ilegíveis numa velha lauda da Folha de S.Paulo, amarelada, descansando dentro do livro Solte os Cachorros, da Adélia Prado? Passando uma flanela em cada disco de vinil, de tempos em tempos coloco um na vitrola. Hoje foi o dia de ouvir inteirinho o primeiro disco do Tom Zé, lá do final dos anos 1960. De repente, ele dá um grito antes da banda começar a tocar uma canção chamada Sabor de Burrice: “Não se morre mais, cambada!”

3.
Quem me dera ao menos uma vez eu fosse Pixinguinha pra dizer que meu coração, não sei porque, bate feliz quando te vê e os meus olhos ficam sorrindo e pelas ruas vão te seguindo, mas mesmo assim, foges de mim. Quem me dera ao menos uma vez eu fosse Alceu pra dizer que meu coração tá batendo como quem diz: “Não tem jeito!” Zabumba bumba esquisito batendo dentro do peito. Teu coração tá batendo como quem diz: ‘”Não tem jeito!”. O coração dos aflitos pipoca dentro do peito. Quem me dera ao menos uma vez eu fosse Caetano pra dizer que o meu coração não se cansa de ter esperança de um dia ser tudo o que quer. Meu coração de criança não é só a lembrança de um vulto feliz de mulher que passou por meus sonhos sem dizer adeus e fez dos olhos meus um chorar mais sem fim. Quem me dera ao menos uma vez eu fosse Noel pra dizer que o coração é o grande órgão propulsor, distribuidor do sangue venoso e arterial, não és sentimental, mas, entretanto, dizem que és o cofre da paixão.

4.
Era um velho fantasma. Claudicava da perna e padecia de asma. Baixando de seus mundos intersidéreos, vagos, à procura de afagos, encontra a noite quente, noite aberta, carioca, e uma porção de gente. Ontem fui um rato de biblioteca, arrumando os meus livros, passei o dia. Estava pra fazer isso há anos e ontem, domingo de confinamento, um solzinho frio lá fora, comecei cedo. Descobri livros esquecidos, todos absolutamente fora de ordem para diversão da minha cabeça organizada, que não admite nada fora de ordem. Aqui é o meu canto anárquico e me espanto com a surpresa de ver Francisco Julião ao lado de Sartre, Salinger encostadinho em Sontag, Matisse vivendo em perfeita harmonia com Clarisse. Minha mulher se assusta ao ver tantos livros tão organizadinhos, espanados, mas absolutamente fora de ordem. Gosto disso para exercitar minha memória de velho. Onde está Istambul de Orham Pamuk? Onde está Um Campo Vasto, de Günter Grass? E O Rio é tão longe, de Otto Lara Resende? Vem um frio na barriga, mas acabo achando. O desafio é este. Chego quebrado ao final do dia, de tanto subir e descer uma pequena escada de alumínio em busca daquele Rubem Fonseca sumido, para reler. Encontro quatro Garcia-Rosa e folheio. Paro em cada um: Paul Auster, Chico Buarque, Piglia, Bolaño, Mário Faustino e todos os latino-americanos: Puig, Fuentes, Sábato, Cortázar, Borges, e aquela montanha de García Márquez, minha paixão desde jovem, quando li pela primeira vez Cem anos de Solidão. Dor nas costas, exaustão. Engulo um Dorflex. Amanhã tem mais. Terminei o dia folheando Drummond. Parei em Assombração: “Era um velho fantasma. Claudicava da perna e padecia de asma. Baixando de seus mundos intersidéreos, vagos, à procura de afagos, encontra a noite quente, noite aberta, carioca, e uma porção de gente.” Poema que me esqueci de colocar aspas lá no início.

5.
O que será que se passa lá fora? Será que faz calor? Dizem que “o frio está de doer”. Será que a banca em frente ao supermercado Madrid, onde compro a Quatro Cinco Um está aberta? Já perdi o número de abril e vi pela Internet que o de maio já saiu. O de abril sei que está guardado pra mim na casa do Humberto Werneck, mas me envergonha pedir o de número de maio também. Tenho um mês pela frente pra inventar o jeito de não desfalcar a minha coleção. Será que as flores do Pão de Açúcar estão vistosas e com um preço em conta? Onde andarão as pessoas que vivem debaixo do viaduto Presidente João Goulart com esse frio que dizem fazer lá fora? Sinto saudade da janela do ônibus onde via os vendedores de frutas nas esquinas da Marechal. Há cinquenta dias não vou a uma padaria, a um sacolão, a uma livraria. Será que os livros expostos na Livraria da Vila escura e empoeirada são os mesmos de cinquenta dias atrás? Estou sabendo que filme nenhum está em cartaz no Petra Belas Artes. Filmes agora é só no Netflix, no Globoplay, no Amazon. Será que algum camelô ainda entra no vagão do metrô vendendo fones de ouvido, dois por dez? Será que os pombos da Praça Cornélia ainda ciscam farelos por lá? E o vendedor de cigarro picado na porta da Estação Ciência da CPTM, onde andará? Como vai minha aldeia? Os executivos de terno atravessando a Paulista, as diaristas aflitas dentro do ônibus Vila Iório, meia hora atrasadas, continuam aflitas? Que dia vou desviar das poças nas calçadas, tomar um café na Fabrique, ir pro Nocaute, correr dos carros assim que o sinal fica verde para os motoristas? Que dia vou acordar e vestir um sapato?

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