Dandara Oliveira de Paula

Gerente Programática do Instituto Marielle Franco. Pesquisadora em direitos humanos e interseccionalidade com foco em gênero, raça e violência

Opinião

Como a violência política ameaça a democracia brasileira

Enquanto for perigoso para mulheres negras fazerem política no Brasil, é dever de toda a sociedade se levantar em defesa de um novo projeto democrático: mais justo e mais plural

Como a violência política ameaça a democracia brasileira
Como a violência política ameaça a democracia brasileira
Foto: Janine Moraes/MinC
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Estamos vivendo um momento no qual precisamos, enquanto sociedade, reafirmar a soberania nacional, defender as nossas instituições e a nossa democracia. Mas você pode se perguntar ‘o que isso tem a ver com violência política?’. E eu te respondo: Tudo!

Primeiro precisamos entender o que é violência política. E se você já leu algum outro artigo desta coluna sabe que violência política de gênero e raça é qualquer ação que busque restringir ou impedir a participação de mulheres na vida política. E, ainda que atinja diferentes perfis, ela tem cor, gênero e território: atinge, de forma desproporcional, mulheres negras, pessoas LGBTQIAP+, representantes de povos indígenas, quilombolas, favelas e periferias. Essa violência ocorre tanto no interior dos espaços institucionais — como câmaras legislativas — quanto fora deles: nas redes sociais, nas ruas, nas mídias.

No caso de mulheres negras, por exemplo, a violência política de gênero e raça se expressa na tentativa constante de deslegitimar suas vozes, questionar sua competência, ridicularizar sua aparência, atacar sua moral, apagar seus projetos políticos e até ameaçar suas vidas. Essa violência tem o efeito de inviabilizar trajetórias políticas, gerar medo e afastar outras mulheres dos espaços de poder.

Para entender a gravidade da violência política, é preciso pensar sobre o que é democracia. Com frequência, ela é reduzida a um conjunto de procedimentos institucionais: eleições regulares, separação de poderes, respeito às leis. Mas a democracia vai muito além disso. Ela só é real quando garante igualdade de condições para que todas as pessoas possam participar da construção do bem comum.

Uma democracia onde apenas alguns podem participar — ou onde a participação de certos grupos é sistematicamente atacada — é uma democracia enfraquecida. Quando uma mulher negra é ameaçada por ocupar um cargo político, não é apenas a sua segurança individual que está em jogo: é o direito coletivo de todas as mulheres negras de estarem ali representadas. Quando uma pessoa trans é ridicularizada por disputar uma eleição, é a legitimidade de toda uma comunidade que está sendo colocada em xeque. E quando a estrutura do Estado se omite diante dessas violências, ela se torna cúmplice da exclusão.

Portanto, a violência política não é um problema isolado — ela é um ataque direto à diversidade, à representatividade e, por consequência, à própria essência da democracia.

Com o avanço da tecnologia e a popularização das redes sociais, o espaço virtual se tornou uma das principais arenas de expressão política. Mas, ao mesmo tempo, também se transformou em um dos ambientes mais hostis para mulheres e pessoas LGBTQIAP+ na política. A recente pesquisa “Regime de Ameaça: Violência Política de Gênero e Raça no Âmbito Digital” do Instituto Marielle Franco (2025) aponta que 87% das mulheres vítimas de violência política de gênero e raça são mulheres negras e que 71% dos casos são de ameaça e intimidação. A violência política no ambiente digital é sistemática e se apresenta de 7 sete formas, segundo pesquisa: disseminação de desinformação e fake news, exposição de dados, ameaças e intimidações, violência discursiva, assédio digital, discurso de ódio e invasão das redes. Esses ataques virtuais são parte de uma estratégia de intimidação, silenciamento e apagamento das mulheres, mas sobretudo da democracia brasileira.

Não há democracia plena sem mulheres negras, LBTQIAPN+, periféricas. Para nós, enquanto sociedade, experienciarmos a democracia plena é necessário que ela reflita a pluralidade da população brasileira, e por isso, combater a violência política é uma agenda central para a sobrevivência e o fortalecimento da democracia. Uma sociedade democrática precisa garantir não apenas o direito de existir, mas o direito de influenciar, de propor, de transformar. E isso só é possível quando todos e todas podem ocupar espaços de poder sem medo representando não só a si mesmos mas um projeto político democrático de país.

Este ano teremos uma nova oportunidade, enquanto país, de lutar pela nossa democracia através do combate à violência política: Julgamento dos mandantes do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes. Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro eleita com mais de 46 mil votos,  foi brutalmente assassinada em 14 de março de  2018, e até hoje não temos respostas e nem responsabilização sobre quem mandou matá-la.

O caso de Marielle é o exemplo mais emblemático do que essa violência representa: uma tentativa de apagar um projeto político que ousa enfrentar estruturas históricas de exclusão e opressão e trazer para o centro uma nova visão de país. E não é mera coincidência que esta mesma pesquisa aponta que 63% dos casos de ameaças de morte citavam o caso do assassinato de Marielle. Ela se tornou símbolo do poder das mulheres negras na política e da defesa dos direitos humanos.

Ao final deste ano, é muito provável que seja concluído no Supremo Tribunal Federal o processo judicial sobre os mandantes do assassinato, que se arrasta há mais de sete anos, resultando, enfim, na responsabilização dos culpados. E o Brasil poderá servir de exemplo para o mundo, assim como está fazendo agora, da crença nas instituições, na fortaleza da nossa democracia e de como deve ser enfrentado crimes contra defensores e defensoras de direitos humanos.

Não há democracia se ela não for capaz de garantir a vida e a voz de todas as pessoas. E enquanto for perigoso para mulheres negras fazerem política no Brasil, é dever de toda a sociedade se levantar em defesa de um novo projeto democrático: mais justo e mais plural.

Um Brasil soberano só é possível com a plena participação de mulheres negras.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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