Raisa D. Ribeiro

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Professora universitária (UNIRIO) e advogada feminista, doutoranda em Direito (UFRJ), mestra em Direito Constitucional (UFF) e especializada em Direitos Humanos (Universidade de Coimbra - Portugal), pesquisadora e coordenadora do projeto Feminismo Literário.

Lara Campos

Advogada, mestranda em Políticas Públicas em Direitos Humanos pela UFRJ

Opinião

Como a indústria pornô contribui para a desumanização do corpo negro

Repleta de comandos coloniais sobre a população negra, as produções da indústria pornográfica seguem obscuras, mas precisam ser enfrentadas.

(Ilustração: iStock)
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No dia 20 de novembro, celebramos a memória de Zumbi, homem negro, líder do quilombo de Palmares, que assumiu importante papel na luta escravagista brasileira. Durante o mês de novembro, sob a justificativa da data consagrada como “consciência negra”, certas questões relativas à vivência negra, que são ao longo do ano despercebidos pela branquitude, tornam-se alvo de destaque na mídia e nas redes sociais.

Curiosamente, entretanto, pouco ainda se destaca sobre o processo de manutenção do corpo negro sexualizado, corrigimos, hipersexualizado, alavancado por propagandas, programas de televisão, streamings, materiais onlines e tantas outras formas de produção e circulação de conteúdo em geral. Nesse vórtex de hipersexulização, existe um instituto, ainda mais silenciado e obscuro, mas que impacta sobremaneira a população negra: o pornô.

O aspecto étnico recebe destaque na indústria pornográfica, e isso é facilmente observado em uma rápida visita a um dos maiores sites de conteúdo pornô gratuito disponível na internet.

Entre as categorias mais populares, encontra-se, no início da lista, a classe “etnias”, que traz, em primeiro lugar em quantidade de conteúdo a subcategoria “negras”.  Com mais de 30 mil vídeos, a capa da categoria é uma mulher negra, sobre suas mãos e joelhos, com foco em suas genitálias, enquanto, em contraste, as demais subcategorias expõem mulheres em posições “sedutoras”.

Uma outra subcategoria que merece destaque é a interracial, que se caracteriza por ser protagonizado por indivíduos de diferentes etnias que se relacionam sexualmente em cena. Para o sucesso desses materiais, é indispensável a utilização dos estereótipos sociais para a trama exposta. Ou, seja, no pornô interracial o indivíduo é incumbido de sustentar o rótulo, seja ele discriminatório ou não, imposto a sua origem étnico-racial.

Neste enredo, a escolha do elenco já traz consigo sua própria história: mulheres asiáticas terão um papel inocente, infantilizado, enquanto o homem asiático será apresentado sempre com pênis pequeno e em passividade sexual. As latinas serão exuberantes, sedutoras, com impressionante desempenho sexual, assim como os homens latinos, quase sempre musculosos e incansáveis. O destaque, no entanto, dado o volume de conteúdo e consumo, é a combinação violenta, literalmente, entre o homem negro e a mulher branca, comumente loira. Nesse cenário se observa que qualquer característica atribuída ao homem negro, é, necessariamente, desumanizatória.

A mulher e o homem negro na representação pornográfica são, majoritariamente, protagonistas de uma cena agressiva, inumana, brutal, bestial. “Negona”, “preta gulosa”, BBC (Big Black Cock = enorme pau preto), “monstros do pau” são nomes comuns nos títulos e descrições dos materiais em que um de seus integrantes é negro.

Quando a personagem é uma mulher negra, essa violência a tem como alvo. É ela um corpo energético, animalesco que demanda ser controlado pelo outro, civilizado. Já quando se fala do corpo do homem negro, este é o agente dos atos devastadores, impossibilitado à sensibilidade, ele é selvático, insaciável.

Independente do gênero, o corpo negro é encarado como um conceito propositalmente indefinido: tal como uma besta, não é nem humano, nem animal, nem tampouco objeto. Não é nada e justamente por essa ausência do ser, tudo pode ser feito com ele. Nada que lhe aflige é encarado como dor, nada do que lhe é feito comove.

Esses conceitos do homem e da mulher negra reproduzidos e nutridos pelo pornô são resultado de um processo de séculos: o colonialismo. Os seios, nádegas, pênis e virilidade eram atributos destacados no momento de compra e venda de escravizados; esses elementos manifestavam ao mesmo tempo a possível insubmissão do corpo, mas também a sua força. Esse estereótipo empregado pela indústria da pornografia é, necessariamente, a manutenção e recrudescimento do corpo negro como não-humano. Para além de um objeto, esse corpo se torna uma massa indefinida de propriedade de algo ou alguém.

Seja na pornografia hétero ou homossexual, esse campo sem regulação que é a indústria pornográfica, é mais um dos grandes obstáculos o qual homens e mulheres negras precisam enfrentar. A imagem operada pelo pornô mantém a fantasia cruel de corpos que não são humanos, contribuindo para a preservação de um mercado afetivo racista. Para se ter uma ideia, o mercado pornográfico é o único no qual ainda a contratação do indivíduo por sua cor não seja compreendida como ato discriminatório.

Pensar sobre a vivência negra é se deparar repetidamente com uma série de procedimentos de um processo desumanizatório, e constatar isso impõe o dever de não tão somente uma reflexão, mas elaboração de políticas que interrompam a perpetuação desse sistema.

Que visibilizar esses problemas seja somente o primeiro passo, e não o único, para a criação dessa consciência que opera sobre um corpo que tem sido historicamente reprimido, controlado e punido, desse corpo que é encarado como a cor do pecado.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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