Amarílis Costa

Advogada, doutoranda em Direitos Humanos na Faculdade de Direito USP, mestra em Ciências Humanas, pesquisadora do GEPPIS-EACH-USP, diretora executiva da Rede Liberdade.

Opinião

Como a banalização da disputa por uma cadeira corrompe a democracia

A democracia não pode se tornar refém de quem transforma o debate político em espetáculo. Caso contrário, todos nós, enquanto cidadãos, perderemos

Como a banalização da disputa por uma cadeira corrompe a democracia
Como a banalização da disputa por uma cadeira corrompe a democracia
Agressão de Datena a Pablo Marçal foi o assunto mais comentado do debate - Foto: Reprodução / TV Cultura
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No último debate entre candidatos à prefeitura de São Paulo, um episódio inusitado envolveu dois personagens de destaque na direita política: José Luiz Datena, um consagrado apresentador de programas sensacionalistas e famoso pelo bordão “só no nosso”, e Pablo Marçal, ex-coach de internet e figura controversa, visto por muitos como uma versão “beta” de Jair Bolsonaro, com mais verniz. Marçal foi acusado de aplicar golpes em idosos, mas, ironicamente, foi ele quem sofreu o “golpe” de Datena durante o embate.

A cena, digna de uma briga de bar em um filme nonsense de faroeste, simboliza o atual cenário político de São Paulo, a maior metrópole da América Latina. Com quatro candidaturas de direita, sendo duas delas explicitamente bolsonaristas, o debate evidenciou a falta de urbanidade e a ausência de limites praticada por figuras que buscam o holofote, muitas vezes à custa do exercício republicano do sufrágio. Ao invés de uma troca de ideias produtiva e alinhada com os desafios do município, o que se viu foi um espetáculo circense, revelando a crise de representatividade e o esvaziamento de discussões relevantes para o futuro da cidade. Essa teatralidade política expõe as fragilidades da democracia quando a disputa eleitoral é pautada pela gritaria e agressões, e não por propostas concretas que possam de fato melhorar a vida dos cidadãos.

A técnica de cortes e memes, comumente usada para enaltecer candidatos, também é empregada para atacar candidaturas de pessoas negras, LGBTQIA+ e mulheres, violando seus direitos. Essas estratégias intensificam os discursos de ódio e a desinformação ao mesmo tempo em que contribuem para o aumento da violência política. Dados da ONU Mulheres mostram que mulheres na política enfrentam o dobro do risco de violência comparado aos homens, enquanto o Inter-Parliamentary Union destaca o assédio online como uma forma prevalente de violência política.

Enquanto isso, a Vigília Cívica, criada para monitorar a integridade das campanhas e a propagação de desinformação, segue na tentativa de alertar a sociedade sobre o impacto disso nas eleições. Em uma reunião recente com a ministra Cármen Lúcia, a Rede Liberdade, junto com outras organizações, enfatizou a gravidade desse cenário. Não bastasse os discursos de ódio e fake news corroerem o processo eleitoral, eles também reforçam a marginalização de grupos já vulneráveis, agravando a exclusão daqueles que deveriam ser ouvidos e representados.

O uso de redes sociais, que deveria amplificar vozes, na prática marginaliza ainda mais as discussões sérias. Cortes sensacionalistas viralizam enquanto a desinformação se alastra, e a violência simbólica substitui o debate público de qualidade. Esse ambiente favorece aqueles que buscam manipular a opinião pública para estar no poder, e não aqueles que estão comprometidos com soluções reais para os problemas do país.

O cenário atual também levanta questões sobre a capacidade das instituições de regulamentar o uso das redes durante as campanhas eleitorais. A monetização de cortes de vídeo, a manipulação de informações e a propagação de fake news continuam sem um controle adequado, e a democracia segue refém desse fenômeno. Propostas para questões como educação, saúde e segurança pública são ofuscadas por uma cultura de ódio que ganha espaço em detrimento de debates importantes.

A compra de sufrágio, que consiste na oferta de benefícios financeiros ou materiais em troca de votos, está prevista no Código Eleitoral brasileiro no artigo 299. Já a lavagem de dinheiro eleitoral, prática que busca ocultar a origem de recursos ilícitos usados nas campanhas, também é tratada no Código Eleitoral, especialmente em relação à prestação de contas e financiamento irregular de campanhas.

Atualmente, a internet tem remodelado essas práticas, e as redes sociais surgem como um novo espaço de atualização de condutas antidemocráticas. Por meio de perfis falsos, campanhas de desinformação e manipulação de dados, as redes se tornaram palco para práticas que burlam as regras democráticas. Essas ações são altamente nocivas para a população, pois distorcem a verdade, corrompem o processo eleitoral e enfraquecem a confiança nas instituições.

O que está em jogo é mais do que uma eleição; estamos diante de uma crise profunda nas instituições democráticas, na qual o diálogo está sendo substituído pelo espetáculo. Se permitirmos que o caos informacional prevaleça, abriremos caminho para que a violência e o autoritarismo avancem, prejudicando a população, especialmente os mais vulneráveis. Precisamos resgatar o processo democrático e garantir que as eleições voltem a ser um espaço de diálogo, de propostas, de inclusão — e não de ódio.

Na década de 1950, a população, frustrada e descrente, elegeu um burro como forma de protesto. Embora o burro tenha sido eleito como um ato de revolta, ele não tinha a mínima capacidade para exercer as funções da cadeira que recebeu. Há o risco de a situação se repetir na eleição atual. O eleitorado está seduzido por campanhas repletas de memes, escândalos e acusações, refletindo uma indignação semelhante à dos anos 50. Para evitar que o passado se repita, é preciso encarar a revolta do povo; não é uma boa hora para ignorar o sofrimento da população com um discurso festivo e chapa-branca. Urge enfrentar a dura realidade e as condições precárias de vida das pessoas com seriedade e compromisso.

As eleições brasileiras estão em um ponto de inflexão. Se queremos proteger a democracia, é preciso combater a desinformação e restaurar a credibilidade no processo eleitoral. Precisamos de políticas públicas que assegurem a integridade das campanhas e da própria eleição, e de uma sociedade que se posicione contra a violência digital que ameaça desestruturar as bases democráticas. A democracia não pode se tornar refém de quem transforma o debate político em espetáculo. Caso contrário, todos nós, enquanto cidadãos, perderemos. Entre vídeos recortados virais, bate-bocas e posicionamentos blasé, a democracia brasileira é abalroada por mais um golpe.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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