Eloisa Artuso

Pesquisa, escreve, desenha projetos e estratégias, dá aulas e palestras como foco em clima e gênero na indústria da moda. É cofundadora do Instituto Febre, organização que pauta a agenda da justiça climática e direitos das mulheres no setor.

Opinião

Como a agricultura familiar investe em práticas para manter a renda, conservar a Caatinga e se adaptar às mudanças climáticas

Em 2025, as chuvas distribuídas de forma irregular e a ocorrência de veranicos longos ameaçam significativamente a produção dos roçados, mas a agroecologia evidencia que é possível planejar o plantio apesar da instabilidade

Como a agricultura familiar investe em práticas para manter a renda, conservar a Caatinga e se adaptar às mudanças climáticas
Como a agricultura familiar investe em práticas para manter a renda, conservar a Caatinga e se adaptar às mudanças climáticas
Fábio Santiago (Diaconia) e Edjunho Tavares ( Sertão do Araripe_PE.
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Enquanto os efeitos da crise climática se tornam cada vez mais visíveis e o mundo se prepara para a COP 30 no Brasil, encontramos na agricultura familiar experiências concretas de resiliência, adaptação e conservação do bioma Caatinga. E não se trata apenas de sobrevivência, mas de inovação e protagonismo de agricultoras e agricultores familiares. O cultivo do algodão em consórcios agroecológicos, a apicultura adaptada à seca, a coleta de sementes nativas e a pluriatividade são estratégias que unem restauração, conservação ambiental e desenvolvimento socioeconômico local. Além disso, trazem personagens reais, dados e boas práticas que podem inspirar políticas públicas e outros territórios.

Em 2025, as chuvas distribuídas de forma irregular e a ocorrência de veranicos longos em diferentes territórios do Semiárido nordestino ameaçam significativamente a produção dos roçados agroecológicos. No entanto, um estudo sobre algodão em consórcios agroecológicos realizado pela Diaconia no território da Serra da Capivara, no Piauí, evidencia que é possível planejar o plantio apesar da instabilidade das chuvas. Prova disso é a comunidade quilombola Lagoas, em São Raimundo Nonato (PI), onde famílias agricultoras estão produzindo alimentos e algodão mesmo diante da escassez hídrica.

O Agricultor José Aragão (APASPIPI) em campo consorciado de algodão agroecológico com culturas alimentares. Comunidade Quilombola Lagoas, município de São Raimundo. Foto: Nonato PI

O segredo está justamente nas práticas agroecológicas. “Mesmo com poucas chuvas, aqui teremos colheita do algodão e feijão. Só não vamos colher o milho, mas poderemos tirar sementes para a próxima plantação. É difícil, mas com boas práticas conseguimos tirar o sustento, e sem queimadas e adubo químico”, afirma o agricultor José Aragão, conhecido como seu Nezinho, que é ligado à Associação dos Produtores/as Agroecológicos do Semiárido Piauiense – APASPI/PI.

Seu Nezinho se tornou referência para a região por aplicar o protocolo de regras da certificação orgânica participativa e boas práticas do algodão agroecológico, uma ferramenta construída a partir da experiência do campo e que orienta famílias agricultoras do Semiárido. Entre as práticas adotadas estão a rotação de culturas, o cultivo em faixas consorciadas, a incorporação de resíduos orgânicos no solo, a manutenção da matéria orgânica e a conservação da vegetação nativa ao redor dos consórcios.

Esses cuidados não só aumentam a produtividade, como também fortalecem a biodiversidade local. Espécies de árvores nativas como umburana, angico, jatobá e juazeiro são conservadas e, ao mesmo tempo, contribuem para o equilíbrio do ecossistema – a vegetação oferece sombra, alimento para os animais e abrigo contra inimigos naturais, mantendo assim a estabilidade do local. Com essas estratégias, mesmo em anos de estiagem severa, há colheita garantida, inclusive de algodão.

João Eudes, também integrante da APASPI/PI lembra que, no passado, muitas pessoas deixavam de plantar por medo das perdas com a estiagem. Hoje, porém, há uma mudança de mentalidade baseada em práticas resilientes. A saída, segundo ele, está na diversificação: apicultura, caprinocultura e agricultura irrigada com poço tubular são algumas das alternativas adotadas. “E uma coisa vai se encaixando na outra. Quando é período de chuva, a gente planta; quando não tem, investe em outras atividades que ajudam a equilibrar a renda”, conclui o agricultor.

Embora o cenário de irregularidade das chuvas no Semiárido seja historicamente conhecido, a situação tem sido alargada pela crise climática, que opera sobre a perda da biodiversidade, configurando um “suicídio ecológico”, conforme aponta o cientista especialista em estudos climáticos, Paulo Nobre. Para ele, a restauração de todos os biomas seria uma eficiente resposta a esse cenário: “adaptação e mitigação climática andam juntas. Quando restauramos os biomas, estamos ao mesmo tempo reduzindo os impactos climáticos e protegendo a biodiversidade”.

É nesse contexto que se tornam cada vez mais urgente as estratégias de adaptação climática que possam caminhar junto com as dinâmicas da agricultura familiar, que é uma das principais atividades do Semiárido. Fábio Santiago, que coordena o Projeto Algodão em Consórcios Agroecológicos da Diaconia, explica que o apoio às diversas iniciativas nas Unidades Familiares Produtivas (UFPs) tem contribuído para reduzir os efeitos sobre as mudanças climáticas.

“A manutenção da paisagem da Caatinga e a recomposição da vegetação são estratégias fundamentais para o sequestro de carbono. Isso é explicado pela eficácia que o bioma apresenta de segurar carbono. Aliado a isso, as atividades nas UFPs estão à luz da certificação orgânica participativa, ou seja, não se pode utilizar a queimada como prática de cultivo, desmatamento, uso de produto químico sintético e uso inadequado de resíduos sólidos. Essas atividades reduzem as emissões de gases de efeito estufa”, afirma Santiago. Ele também observa que essas ações vêm contribuindo para a diversificação sustentável da renda das famílias agricultoras sem a necessidade de práticas relacionadas a derrubada da Caatinga.

Aqui a justiça climática, que entende a crise do clima não apenas como um problema ambiental, mas como uma questão de direitos humanos e desigualdade social e histórica, está posta. Em vez de focarmos somente nas emissões ou em novas tecnologias, devemos nos perguntar: quem mais sofre com a emergência climática? Precisamos garantir que a resposta à crise e qualquer plano de transição sejam justos e centrados nas pessoas mais afetadas — sendo elas as que menos contribuíram para o problema.

A Caatinga restaurada e conservada se mostra uma riqueza capaz de contribuir para isso. Já a COP 30, que pode representar uma oportunidade para o Brasil liderar as negociações climáticas globais e promover ações concretas, parece contraditória demais em um contexto de avanço no processo de desmantelamento da lei de licenciamento ambiental e de pressão para a exploração de petróleo na Foz do Amazonas. Muitas oportunidades em meio a muitas contradições. Vamos torcer para, um dia, conseguirmos seguir um novo caminho, onde governos invistam em comunidades saudáveis e seguras e empresas não saqueiem a natureza para obter lucro. Um caminho onde a agroecologia seja vista como uma alternativa viável, potente e escalável para o enfrentamento da crise climática.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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