Andréa Werner

Jornalista, escritora, ativista, e fundadora do Instituto Lagarta Vira Pupa, que dá apoio a famílias de pessoas com deficiência. Também é mãe do Theo, de 14 anos, autista

Opinião

Com o rol taxativo, pacientes podem morrer antes provar à Justiça que precisam de tratamento

O STF é a opção, mas também não é uma saída simples. Se tudo não for muito bem planejado, o tiro pode sair pela culatra

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Na última quarta-feira, dia 8 de Junho, em um julgamento que mais parecia um teatro mal ensaiado, o STJ decidiu que o rol de procedimentos e eventos em saúde da Agência Nacional de Saúde Suplementar, a ANS, é taxativo. O que deveria ser uma decisão apertada virou um 6 a 3, praticamente o 7×1 da Copa de 2014. 

Isso significa que, a partir de agora, os planos de saúde não são obrigados a cobrir nada que não esteja neste rol. A decisão impacta 50 milhões de usuários de convênios no Brasil inteiro. E também o SUS, que vai receber as demandas de todos os procedimentos, medicamentos e cirurgias negados pelos planos a partir de agora.

O entendimento do judiciário sempre foi de que o rol da ANS era uma lista de cobertura mínima que os planos deveriam cumprir. Portanto, se o seu plano de saúde negasse algum exame ou procedimento alegando não estar no rol e você levasse o caso à Justiça, provavelmente venceria. A partir de 2019, no entanto, o ministro Luis Felipe Salomão mudou seu entendimento sobre o assunto e “contaminou” toda a 4ª turma do STJ.

Como a 3ª Turma mantinha o entendimento de que o rol é exemplificativo, o resultado dos processos dependia de que turma julgava. Foi quando a Unimed entrou com os “embargos de divergência”, processo que visava unificar o entendimento da segunda seção  STJ sobre o tema.

Desde que o julgamento dos embargos foi retomado, em fevereiro de 2022, iniciaram-se protestos no Brasil inteiro. Mães, familiares e pessoas com deficiência, doenças crônicas ou raras levantaram cartazes em frente aos Tribunais de Justiça de todos os estados, se acorrentaram em frente ao STJ, mobilizaram atrizes, atores e influenciadores para falar sobre o tema. A mobilização não parou com o pedido de vista do ministro Cuevas, postergando para Junho o julgamento final.

Nesse meio tempo, algo importante aconteceu e passou despercebido pela maioria. Na calada da noite, no início de março, o presidente Bolsonaro editou a lei 14.307/2022 via medida provisória. Ela contém, em seu artigo 4º, o seguinte: “A amplitude das coberturas no âmbito da saúde suplementar, inclusive de transplantes e de procedimentos de alta complexidade, será estabelecida em norma editada pela ANS”. Sutilmente, Bolsonaro decretou a taxatividade do rol da ANS.

Esta lei baseou o voto de 3 ministros no dia 8 de junho. Um julgamento que deveria ser apertado virou um baile do poder financeiro sobre o cidadão comum. Em seu voto, a Ministra Gallotti afirmou: “estamos tratando de empresas que buscam o lucro, este é o ponto aqui”. Ali anunciava-se o tom. Ao lado da Constituição, regida pelo princípio de não retrocesso social, apenas a ministra Nancy Andrigui e os ministros Tarso Sanseverino e Moura Ribeiro, que foram os únicos que pareceram perplexos com o resultado final.

Como bem disse a Ministra Nancy, “não se trata de uma escolha de Sofia entre a vida e os lucros das empresas”. Realmente, a escolha não pareceu difícil aos seis ministros que decidiram contra os usuários de saúde suplementar, mercado que lucrou R$ 17,5 bilhões em 2020. Os próprios advogados dos convênios, que acompanharam o julgamento do plenário, pareciam confortáveis, ao ponto de um ter sido visto jogando “Candy Crush” no celular. Logo que se formou a maioria, começaram, imediatamente, a peticionar para derrubar liminares de pacientes do país inteiro.

 A decisão pelo rol “taxativo mitigado” significa que os planos poderão cobrir exceções. Mas os critérios para essas “exceções” são, propositalmente, difíceis de cumprir: ter eficácia científica comprovada e/ou validação internacional, nunca tiver sido negado expressamente pela ANS, ter validação em órgãos nacionais como Conitec e Natijus, não ter procedimento similar no rol, e já ter esgotado todas possibilidades contidas no rol. E tudo tem que ser comprovado nos autos do processo.

A regra é clara: o rol de procedimentos é taxativo e, portanto, a negativa administrativa torna-se uma dura realidade, conforme centenas de prints que já estamos recebendo de famílias que, até dia 07/06, tinham procedimentos fora do rol autorizados sem grandes objeções. A exceção terá que ser buscada judicialmente. O STJ simplesmente inverteu o ônus da prova para a parte mais fraca da cadeia: o cidadão. Antes, era o convênio que tinha que provar a falta de necessidade ou importância do procedimento fora do rol. Agora, o usuário tem que provar que é essencial. Aliás, alguém tem ideia do valor de uma perícia no poder judiciário?

Se muitos juízes já vinham derrubando liminares há meses somente com base no voto do ministro Salomão, dado em setembro de 2021, o que vemos agora é uma cascata de negativas administrativas de convênios e avisos de fim de cobertura. Processos que ainda não tiveram sentença estão em risco. E não se sabe, ainda, se os convênios vão querer e poder pedir ressarcimento dos usuários pelos gastos que tiveram enquanto as liminares estavam válidas. 

Isso afeta milhões de pessoas que dependem de terapêuticas e exames específicos para câncer, serviço de homecare, intervenções variadas para diferentes deficiências, bipap, cirurgia intrauterina, medicamentos para doenças raras, ELA, AME. A lista é imensa.

O acesso à Justiça no Brasil é limitado. E, com a dinâmica instituída a partir de agora, quem tem acesso à Justiça pode morrer até provar que realmente precisava do medicamento ou procedimento. 

Vários deputados e senadores surgiram com projetos de lei para tornar o rol exemplificativo. É uma pena ver o legislativo despertar só agora, após a MP de Bolsonaro e a decisão do STJ, que nem deveria estar decidindo sobre isso, de acordo com o próprio ministro Buzzi em seu voto.

O STF é a opção, mas também não é uma saída simples. Se tudo não for muito bem planejado, o tiro pode sair pela culatra.

Na madrugada do dia 7 para o dia 8, ativistas de Goiânia se acamparam em frente ao STJ para aguardar o julgamento e protestar. Na madrugada, quando as temperaturas chegavam a 10 graus em Brasília, os irrigadores do gramado foram ligados. Já era um prenúncio de como o judiciário brasileiro, que devia prezar pela Constituição e pelos direitos do cidadão, se comportaria algumas horas depois.

 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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