Justiça

Com a palavra, uma menina preta

Confira o texto de estreia da coluna da Abayomi Juristas Negras

Foto: Paula Johas/ Prefeitura do Rio de Janeiro
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Hoje eu acordei com vontade de escrever e quero começar me apresentando. Meu nome é Chiara, eu tenho 10 anos, sou filha de Carla e Cláudio e irmã de Cláudio Jr. Nós moramos no Engenho Bom Gosto, mas eu e meu irmão estudamos em Palmares, que é a maior cidade aqui da Zona da Mata de Pernambuco.

Eu gosto de morar aqui, de poder andar de pés no chão, de subir no pé de manga mais alto e de me embrenhar no meio da mata para ver se encontro Comadre Fulozinha, de quem vovó tanto fala. Também gosto de música, de ler e de falar. Tem muita coisa que eu não gosto nesse mundo, mas a injustiça é a pior delas.

Vovó diz que sou respondona e teimosa, mas eu não concordo. Eu só não aceito coisas injustas e fico muito nervosa quando me mandam calar a boca. É nessas horas que eu costumo gritar mais alto. Eu não aceito essa coisa de que quando adulto fala criança se cala. Eu tenho muito mais coisa interessante para dizer que a maioria dos adultos que eu conheço.

Minhas tias dizem que qualquer dia desses eu vou dar na cara dos meus pais, de tão malcriada que eu sou. Eu jamais faria isso, eu amo e respeito muito os meus pais. Eu acho que respeito muito mais do que algumas pessoas que pedem benção e chamam de senhor e senhora, mas ofendem e humilham seus pais. Eu jamais farei isso.

 

O que acontece é que eu sei que tenho o direito de falar e até mesmo de gritar para me defender. Algumas vezes, quando eu passo dos limites, minha mãe me dá um pequeno beliscão, mas lá no fundo ela acha bonito que eu não me cale. Ela já me contou que tinha que se trancar no banheiro para abafar os próprios gritos de revolta quando a mãe dela fazia algo que ela achava injusto. Ela nunca quis que eu sentisse essa dor de ser silenciada, e meu pai respeita isso.

Eu sou boa em argumentar, tanto que eu já decidi o que eu quero ser quando crescer: advogada. Eu quero poder falar contra todas as injustiças, mas principalmente contra aquelas que nós, meninas pretas, sofremos. Eu quero poder argumentar melhor quando dizem: “isso não é para você porque você é menina” ou “isso não é para você porque negrinha”.

Estou dando voltas e não falo sobre o que quero realmente falar porque é um assunto que me deixa muito angustiada. Ontem a minha mãe me chamou para conversar. Com todo cuidado possível, ela contou que um conhecido nosso tinha agarrado uma amiguinha minha, que tem a mesma idade que eu. Eu percebi que mainha estava sem saber como conversar sobre aquilo, ela estava escolhendo as palavras e contou que aquele homem tentou “mexer” com a menina e a sorte foi que o pai dela entrou no quarto bem na hora. Eu fiquei enjoada só de pensar.

Minha mãe me contou isso para perguntar se ele já tinha tentado “mexer” comigo também. Eu respondi que não. E ela disse que se algo parecido acontecesse, eu deveria gritar por ela. Ela ainda terminou dando graças a Deus por eu ter essa impetuosidade do grito. Ela tinha me educado para eu me defender.

Mas eu também tenho um instinto, sabe? Eu tenho uma voz interna que me diz que não é seguro ficar sozinha com homens mais velhos, com exceção do meu pai. Talvez seja alguma memória de outras vidas, ou uma memória genética, como li esses dias, mas eu sinto que posso ser atacada a qualquer momento e que podem me roubar, sequestrar-me de mim mesma, destruírem a minha inocência.

Eu não sei o que é andar pelas ruas sem medo. Eu nem gosto de usar roupa curta. Minha mãe compra algumas coisas com tanto carinho, mas eu não gosto de usar shorts. Na verdade, eu tento me esconder, mas mesmo assim sempre tem algum homem na rua que vai assoviar para mim e me chamar de gostosa. Eu odeio essa palavra. Odeio.

Esses homens não deveriam fazer isso. Não mesmo. Por isso eu sempre grito para eles, mesmo quando mainha diz que eu não devo fazer isso. Eu estiro o dedo na direção deles e grito xingamentos e palavras que nem sei o que significam. Nessas horas eu sinto um misto de ira e de medo.

Talvez esse meu poder do grito tenha me salvado até hoje, mas eu sempre me pergunto: e amanhã? Esse medo caminha comigo mesmo nos dias hoje, que habito o interior do corpo dessa mulher negra aguerrida, que conseguiu furar tantos bloqueios impostos pelo racismo e pelo machismo, mas que em dia como os de hoje se socorre em mim, sua criança interior.

Essa mulher chegou à vida adulta sem ser violentada sexualmente em um país onde 4 meninas de até 13 anos são estupradas por hora, onde mais de 80% das vítimas desse crime bárbaro são negras. Isso sem considerar todas as que são silenciadas e não fazem parte das estatísticas oficiais da segurança pública. Sabemos que esse número é muito maior.

Eu sou a criança interior dessa mulher que milita por equidade racial com as suas irmãs da Abayomi Juristas Negras, mas que está desde ontem com um nó na garganta e não consegue falar sobre o que aconteceu com a nossa irmã de cor, que veio lá do Espirito Santo e chegou aqui em Pernambuco cheia de medo. Ela se angustia por querer abraçar essa criança e dizer que tudo vai ficar bem, que o pior já passou, mas ela sabe que não seria verdade.

A mulher que eu habito quer gritar contra todos aqueles que se acham no direito de violentar ainda mais uma menina preta, que deveria ser acolhida e protegida. Essa mulher quer montar em um búfalo e atropelar com as suas palavras as pessoas que estão invocando Deus e o Cristo para fundamentar uma cruzada de ódio e estupidez contra uma criança. Ela gostaria de cobrar do poder público a violação da lei de abuso de autoridade ou, ao menos, gostaria de ter escrito uma nota de repúdio e publicado nas suas redes sociais.

Mas essa mulher aparentemente tão forte, hoje paralisou diante da violência e da sensação de impotência e a única coisa que ela conseguiu fazer foi conseguir me resgatar de dentro dela para contar tudo isso a vocês.

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