Felipe Milanez

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Professor de Humanidades na Universidade Federal da Bahia. Pesquisa e milita em ecologia política.

Opinião

Com a morte Paulo Marubo, a Amazônia perde um grande diplomata 

Como muitos outros indígenas do Vale do Javari, Kenampa morreu devido às epidemias levadas por invasores, o racismo e o descaso do Estado

(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
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Faleceu, no último sábado, 3 de fevereiro, em Manaus, o líder indígena Kenampa, do povo Marubo. Paulo Marubo, como era conhecido entre os não indígenas, tinha 44 anos. Deixa esposa e sete filhos, e a memória de ser um dos grandes diplomatas de nosso tempo. 

Kenampa nasceu em abril de 1979 (um ano mais novo do que eu), na aldeia Maronal, no rio Curuçá. Se formou no aprendizado tradicional, e ali também foi professor das redes municipal e estadual, e presidiu a Associação de Desenvolvimento Comunitário do Povo Marubo do Alto Rio Curuçá. Coordenou, ao longo de nove anos, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja). Sempre se dedicou inteiramente ao movimento indígena e era um exímio conhecedor da história de seu povo. 

Como muitos outros indígenas do Vale do Javari, Kenampa morreu devido às epidemias levadas por invasores. Teve hepatite e o descaso do Estado, tanto na prevenção quanto no tratamento da doença, o levaram a morrer por falência múltipla dos órgãos. Kenampa morreu lutando pela vida, por acesso digno à saúde, defendendo a saúde de qualidade para os povos indígenas e denunciando a negligência crônica com a saúde dessas comunidades

Esse descaso não se limita ao corredor de um hospital: esteve presente ao longo da sua vida, na forma da catástrofe sanitária que atinge os indígenas no Vale do Javari e que tem sido tão denunciada pelo movimento indígena. 

Seu último ato político foi uma campanha, feita junto de seu irmão, uma vaquinha para conseguir arrecadar 20 mil reais para custear exames e uma internação de emergência. O básico, o mínimo. Na campanha, seu irmão Moacir lembrou que Paulo Marubo era uma grande liderança do Vale do Javari, que dedicou sua vida ao movimento indígena e que, agora, em um momento difícil, pedia a colaboração. No Brasil racista, contudo, a campanha não teve impacto, não gerou comoção. No Brasil da “letalidade branca”, como ensina meu colega da UFBA, o professor e antropólogo Felipe Tuxá, Kenampa morreu como os indígenas do Javari são mortos: expostos ao risco, tendo o corpo e suas florestas contaminados, relegados ao descaso da Saúde. 

Kenampa também lutou contra o genocídio dos outros povos que habitam o Vale do Javari – e toda a Amazônia. E lutou de forma extremamente tenaz e corajosa. Soube mediar o conflito entre os povos Matis e Korubo, que explodiu em 2014, após intervenções equivocadas e colonialistas do Estado brasileiro e da política indigenista. Foi figura chave no processo de pacificação da região e no contato, em uma expedição histórica liderada por seu amigo e parceiro Bruno Pereira, em 2018. 

Da mesma forma, soube cobrar da Funai e do estado brasileiro investigações de denúncias de genocídios e massacres que ocorreram no Vale do Javari em 2017: um massacre supostamente organizado por madeireiros e denunciado em julho por indígenas Kanamari e um massacre que foi relatado por garimpeiros, em agosto e era investigado pelo MPF, que publiquei em primeira mão nesta CartaCapital. Nesses casos, a Funai em Brasília negava a violência anti-indígena e reduzia as denúncias dos indígenas a meros boatos, recusando-se inclusive a investigar os crimes. Kenampa foi enfático: “Os índios isolados foram massacrados, mas Funai diz que não há provas”. 

Foi pela luta do movimento indígena, liderado por Kenampa, que se organizaram expedições para verificar em campo as denúncias desses genocídios – investigações que infelizmente não foram acompanhadas de igual esforço da Polícia Federal sobre os garimpeiros. 

Essas denúncias de massacres contra os indígenas em isolamento em meados da década passada, perpetradas por invasores como madeireiros, garimpeiros e narcotraficantes, foram premonitórias do aumento da violência e da tragédia que iria seguir nos anos Bolsonaro, com os terríveis assassinatos de Maxciel dos Santos (em setembro de 2019, Bruno Pereira e Dom Phillips. Em todos esses crimes, Kenampa foi fundamental para as buscas e a luta contra impunidade, e mesmo recebendo ameaças de morte, nunca deixava de expor a público, para a sociedade, as injustiças.

Paulo Marubo também enfrentou o crescimento do extremismo, da expansão do narcotráfico, do garimpo, denunciou com coragem genocídios que ocorreram para que fossem investigados, cobrou a Funai a agir, sempre se colocando como movimento indígena e ao lado da luta das bases nas aldeias.

Era também um grande defensor do mundo espiritual – sem ser xamã, vivia sempre protegido e cuidado pelo xamanismo. Com muita tenacidade, denunciava o etnocídio provocado por missionários, enfrentava e lutava contra a entrada dos missionários no Vale do Javari, e expunha sempre em suas falas a crueldade e perversidade do trabalho de evangelização missionária. Tanto lutava contra o etnocídio, quanto buscava fortalecer entre os indígenas o conhecimento do dano que era provocado pelo trabalho missionário. E isso era algo muito delicado internamente. 

O falecimento de Kenampa provocou uma onda de luto e reconhecimento entre entidades indígenas e indigenistas, como a APIB, Coiab, CIMI e CTI, ressaltando sua incansável defesa dos povos do Vale do Javari e sua contribuição fundamental ao movimento indígena. Suas iniciativas em prol da proteção e segurança indígena, especialmente através da criação da Equipe de Vigilância da Univaja, foram lembradas como legados de sua liderança, enquanto sua luta e personalidade inspiradora foram celebradas como exemplos de resistência e coragem frente aos desafios enfrentados pelos povos indígenas.

Como professor na UFBA, em Salvador, e antes, na Universidade Federal do Recôncavo, tive o privilégio de receber Kenampa na Bahia. Na primeira vinda, em maio de 2018, ele foi palestrante de um grande encontro sobre o racismo contra os povos indígenas e também de diferentes rodas de conversas do encontro. Era enfático na luta espiritual e contra a evangelização, definida por ele como uma marcante expressão do racismo.  

Descobri que ele era fã do Olodum desde pequenininho, quando vivia na aldeia Maronal, e era seu sonho ver uma apresentação do grupo e conhecer a sua sede no Pelourinho. No dia que fomos na sede no Pelô, por acaso (mas, na Bahia, sabemos que não existem coincidências), o Olodum fez uma apresentação surpresa para celebrar o aniversário de um de seus integrantes. Kenampa chorou de emoção. Em um projeto para se discutir o racismo no Brasil, era lindo ver a admiração que ele tinha pela cultura afro-baiana e seu empenho em aproximar as lutas antirracistas. 

Kenampa visitou Santo Amaro, foi à casa de Dona Canô, participou do ritual do Bembé do Mercado, fez oferendas para Iemanjá na praia de Itapema, visitou o terreiro Guarany de Oxossi, conversou com estudantes e debateu intensamente com outros parentes indígenas o racismo no Brasil. Nunca me esqueço, no nosso retorno para Salvador, de uma longa conversa entre Kenampa e Ailton Krenak sobre a luta do movimento indígena e a violência do Estado brasileiro. O convívio com Kenampa me ensinou muito sobre o Brasil e sobre a vida. 

Sua segunda vinda à Bahia foi em um contexto mais duro. Em 15 de setembro de 2022, ele e seu companheiro de movimento indígena Kora Kanamary vieram a Salvador em razão dos riscos de vida e ameaças de morte. Era uma reunião com apoiadores. Sua saúde estava mais frágil, mas ele mantinha a mesma alegria e admiração pelo Olodum, feliz de estar em Salvador. Junto de Kora, deu uma aula magistral na UFBA sobre o contexto da violência no Vale Javari sob Bolsonaro, a expansão do narcotráfico e a força das milícias. Tinha uma capacidade analítica ampla, uma visão de mundo que ia desde a situação de enfrentamento direto na base até as lutas políticas em Brasília e o contexto internacional. Era um gênio. Mesmo diante de tanta dor – e a dor que os trazia a Salvador em razão das ameaças que sofriam, a memória dos amigos assassinados – a aula terminou com um canto e dança em uma roda puxada por Kora, com energia e alegria para lutar.

Sou imensamente grato pelo privilégio do convívio com uma pessoa com uma luz tão brilhante, e extremamente triste pela forma como sua vida foi arrancada pelo genocídio e pelo descaso sistemático da saúde. No encontro inesquecível de Cachoeira em 2018 Kenampa fez falas brilhantes – o documentário Minha Alma Não tem Cor, de Graciela Guatrani e Alexandre Pankararu, resume um pouco da efervescência desse encontro, que deve sair publicado em livro em breve pela EDUFBA (alguns textos e vídeos, incluindo o documentário, podem ser vistos na página do projeto aqui). Mas há um testemunho que ele concedeu a Graci Guarani que é um primor, e reproduzo abaixo pois uma pessoa da dimensão que foi Kenampa, deve ter suas palavras ecoadas para a um recomeço e ancestralidade. 

Na oralidade, como ensinou o mestre Nego Bispo, sabemos que gente como Kenampa não tem um fim, e que a existência não é linear: “somos o começo, o meio e o começo”. Viva Kenampa que retorna ao começo ancestral entre os mais jovens e aqueles que irão nascer, e irão ter a chance de viver com suas tradições e em uma terra protegida e coberta por floresta, muito em razão também da luta que ele lutou por toda sua vida.

Depoimento de Kenampa em Cachoeira em maio de 2018:

Eu me chamo Paulo Marubo, em português. No povo Marubo, eu sou Knampa. Eu sou o atual coordenador-geral da Univaja, União dos Povos Indígena do Vale do Javari. Eu venho de uma área de muita vulnerabilidade, a tríplice fronteiro do Brasil, Peru e Colômbia. Eu queria dizer que estou achando este encontro muito importante, pois é uma oportunidade, um espaço para colocarmos essa nossa preocupação e dizer que nós não merecemos esse preconceito, esse racismo, porque a gente é humano. Nós somos os verdadeiros brasileiros. A gente tem a nossa cultura. O que diferencia é a língua, a forma de viver, a forma de a gente acreditar em nossos deuses. Mas no corpo físico, nós somos parecidos com os brancos, a sociedade não-indígena. 

Neste evento estamos aproveitando para trocar ideias com os parentes mas também com os antropólogos que também têm essa mesma preocupação, que tem visão de indígena, digamos assim. Eu sempre falo que existe branco com corpo de branco e cabeça de índio, e tem índio que tem corpo de índio e cabeça de branco, que são essas pessoas que ajudam os brancos a discriminar os povos indígenas, ajudam os povos indígenas a acabar com sua própria cultura, a desvalorizar sua própria cultura. 

Esse evento eu creio que vai nos fortalecer, é uma oportunidade aonde podemos debater e colocar essa nossa preocupação sobre o racismo nas escolas públicas, nos espaços públicos, e pedir a esses antropólogos que estão estudando, para eles levarem e publicarem nas escolas ou aonde quer que seja. Para que os brancos possam nos respeitar e ver que os índios não são da forma que eles pensam, pois alguns acham que índio é animal, que índio não tem alma. Então eu acho que é através da escola, da educação, que os brancos vão entender quem é o índio. Na verdade, nós não somos índios, somos diferentes povos, diferentes nações. E somos originários do nosso país chamado Brasil

Em relação ao racismo, tem muito branco que fala que aqueles que não falam mais a língua não são mais índios. Eu entendo o contrário. Nós manuseamos a tecnologia porque a gente tem esse contato com a sociedade não-indígena. Nossos pajés, os nossos ancestrais já sabiam que iam chegar essas pessoas trazendo tudo que não presta. O celular, por exemplo, para o povo indígena, no mundo do índio, traz problemas de saúde, problemas psicológicos – eu não sei se vocês percebem isso. Se você acreditar no que o pajé fala, se você confiar, se você acreditar, você começa a entender que as coisas não são tão legais quanto a gente vê fisicamente. Então, assim, eu estou com essa roupa, estou com óculos, estou com esse negócio aqui, esse fone de ouvido, mas eu sou índio. O meu sangue que corre aqui é de índio. Dá para perceber que eu falo mal o português. Em alguns lugares, por exemplo, em São Paulo, Rio de Janeiro, em Brasília, eles me tratam como estrangeiro. Em Brasília mesmo eu cheguei no aeroporto e os caras começaram a falar espanhol comigo. Eu falei: ‘não sou estrangeiro, não sou espanhol, não sou chileno, é que eu sou índio. Eu sou o verdadeiro povo daqui do nosso país’. Pena que alguns parentes perderam a sua língua. Não foi porque eles quiseram abandonar sua própria cultura, mas foi uma pressão. Os portugueses chegaram aqui impedindo os povos indígenas de praticar sua própria cultura, de falar sua própria língua. Esses povos sofreram muito, passaram por uma situação muito difícil, para poder segurar, valorizar, ou praticar a sua língua, a sua cultura. E então, só porque você fala português você não é mais índio? Só porque você trabalha como professor, como antropólogo, deixa de ser índio? Não! Nós precisamos obter essas informações, esses conhecimentos, adquirir esses conhecimentos para a gente ter uma comunicação melhor com a sociedade branca.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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