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Opinião

Columbine já se anuncia aqui. Evitemos enquanto há tempo

Se a história brasileira transcorreu de modo diferente, isto não significa que ela seja menos violenta do que a norte-americana

Escola Estadual Raul Brasil (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)
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Columbine é certamente um dos paradigmáticos eventos violentos que marcaram a recente cultura norte-americana, uma vez que o massacre teve um planejamento cuidadoso durante meses, do qual fizeram parte a aquisição de armas de fogo e a de material para a produção de bombas caseiras e de propano; e os atiradores tornaram-se marca a ser copiada.

Em 1999, dois estudantes transformaram a Columbine High School, no Colorado, num palco de horrores e mataram doze colegas e um professor, além de ferirem outras pessoas, antes de se suicidarem. Filmes eternizaram a tragédia, dentre eles os premiados Tiros em Columbine, o documentário de Michael Moore/Michael Donovan, e Elephant, de Gus Van Sant. Corta para o Brasil. Na Escola Estadual Raul Brasil, em março de 2019, dois ex-alunos entraram armados e a primeira pessoa a ser assassinada foi a professora de filosofia e coordenadora pedagógica Marilena Umezu, que os recebeu. A cada episódio semelhante ocorrido em terra brasilis, Columbine emerge mais um pouco a nossa vista: o chão da escola, os tiros, a correria, as mortes, o suicídio e mais uma história trágica em que armas letais nas mãos de adolescentes protagonizaram o terror. Já não são poucos os ocorridos, como o da escola de Realengo/RJ (2011) ou o do colégio goiano (2017), em que um adolescente de 14 anos matou e feriu colegas, inspirado em Columbine e Realengo, com a pistola familiar. Todos com rastros de destruição de pessoas, famílias e de comunidades.

Destaco sucintamente conclusões de três pesquisas interessantes realizadas nos EUA que apresentam informações importantes para minha argumentação: os assassinatos nas escolas como resultado de uma cultura da violência que, por admitir o fácil acesso às armas de fogo, faz com que a maioria dos autores já tenham contato prévio com estes instrumentos letais, a relação entre este acesso e os assassinatos, sobretudo os de pessoas conhecidas.

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É certo que massacres por armas de fogo perpetrados por cidadãos norte-americanos armados não se restringem às escolas, pois outros aconteceram nas ruas, igrejas, shows, por exemplo. Este fato recorrente não suprime a perplexidade, porque aquela sociedade tem lidado cotidianamente com o porte de armas desde a Segunda Emenda da Constituição que, em 1791, reconheceu o direito do povo de se armar para se defender (no calor da luta pela independência do país) até a cultura dos cowboys e da caça esportiva profilática contra o crescimento populacional de animais não-humanos em vários estados, e a presença dos poderosos lobbies da indústria de armas e de associações como a Associação Nacional de Rifles. Neste contexto, os que estão habilitados a portar armas de fogo podem comprá-las nas proximidades de casa, em pequenas lojas ou em grandes redes nacionais licenciadas.

As agências do governo norte-americano United States Secret Service e United States Department of Education publicaram, em 2004, o relatório The final report and findings of the Safe School Iniciative: implications for the prevention of school attacks in the United States, elaborado a partir das análises de 37 casos de tiroteios em escolas. O relatório visou identificar informações que pudessem previamente orientar estratégias que prevenissem ataques às unidades escolares. Esta iniciativa focou a violência escolar direcionada, porque o espaço escolar foi o local escolhido. Duas das dez conclusões indicaram que a maioria dos autores dos atentados às escolas teve acesso e já havia usado armas antes do ataque e que muitos agressores se sentiram previamente perseguidos ou feridos por outros colegas, como nos casos de bullying. Em 2014 foi publicado outro estudo, The relationship between gun ownership and Stranger and Nonstranger Firearm homicide rates in the United States, 1981–2010. A análise da longa série histórica de dados confirmou que, se não é possível estabelecer relação estatística significativa entre a posse de armas e as taxas de homicídios por armas de fogo, ao contrário, é possível associar a posse de armas e as taxas de homicídios por armas de fogo não estranhas. Assim, demonstrou empiricamente o aumento nos casos de homicídios de pessoas conhecidas do proprietário da arma. A pesquisa The accessibility of firearms and risk for suicide and homicide victimization among household members: a systematic review and meta-analysis free, de 2014, atestou que o acesso a armas de fogo está associado ao risco de suicídio e ao de ser vítima de homicídio.

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Estas conclusões mostram o que aparece nas discussões nacionais nos EUA a cada evento traumático como o da escola do Colorado: as consequências nefastas do porte legal de arma de fogo a que os cidadãos habilitados têm direito e o acesso fácil a armamentos facultados pela cultura que cultua armas. De sobremaneira este segundo aspecto arma crianças e jovens que passam a ter condições de matar conhecidos como os colegas de escolas, professores, secretários, jardineiros, inspetores. Estas discussões levantam também a questão de como coadunar os massacres decorrentes da facilidade de possuir e portar armas com a Segunda Emenda, situação que cabe aos norte-americanos resolverem.

No Brasil não temos algo similar à Segunda Emenda e muito menos uma cultura que cultua armas de fogo como um de seus elementos cruciais e que é festejado em figuras ícones, filmes, feiras e defendido como direito à auto-defesa. Se a história brasileira transcorreu de modo diferente, isto não significa que ela seja menos violenta do que a norte-americana. Mesmo sem a explícita cultura das armas aqui se mata e morre em escala comparável à de guerras. A estatística dos assassinatos cometidos por quem pode portar arma, como policiais em serviço, revela a faceta cruel da sociedade, sobretudo quando se refere à população pobre e negra: mata-se e morre-se aos quilos. De acordo com as análises do Atlas da Violência 2018, dos 5.896 boletins de ocorrências de óbitos em intervenções policiais, entre 2015-2016, que representaram 78% do universo das mortes no período, 76,2% dos óbitos decorrentes da atuação da polícia foram de pessoas negras. Em 2016, a taxa de homicídios de negros foi duas vezes e meia superior à de não negros; igualmente, a taxa de homicídios de mulheres negras foi 71% superior à de mulheres não negras. Por outro lado, o fácil acesso às armas de fogo nas mãos de segmentos bandidos alcança os policiais, em sua maioria mortos fora do serviço.

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Sim, esses assassinatos doem nos ossos dos que ficam. Sem comparar as dores que são incomparáveis em suas particularidades, as mortes decorrentes de tragédias ocorridas nas escolas como as de Salvador (2002), Realengo (2011), João Pessoa (2012), Goiás (2017) e Suzano (2019) doem nos ossos e na alma. Talvez por terem sido realizadas no espaço escolar por crianças ou jovens que tiveram acesso a armas, na maioria das vezes de familiares, e que com elas mataram conhecidos, desafetos ou não. Como em Columbine, nestes casos valem as duas conclusões do relatório das agências norte-americanas: o contato e o fácil acesso a armas de fogo e sua relação direta com assassinatos de conhecidos.

O mais assustador é ouvir vozes como a do presidente da República, Jair Bolsonaro, e parlamentares como o senador major Olímpio (PSL-SP), dentre outros, manifestarem-se a favor da flexibilização da posse e do porte de armas, especialmente nas zonas urbanas e, portanto, da individualização da segurança pública que cabe ao Estado. Mais assustador ainda é saber que estas vozes expressam a vontade de alguma parcela da população brasileira. O próprio presidente esquece que em 1995 sofreu um assalto no bairro de Vila Isabel/RJ, noticiado pelos jornais da época. Os bandidos levaram a moto e a arma Glock. Diante da abordagem inesperada dos assaltantes, na delegacia afirmou: “Mesmo armado me senti indefeso”. Ele, um militar.

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Ao se defender a proposta de que a sociedade civil se arme para se autoproteger, é possível exigir que profissionais da educação que não lidam cotidianamente com armamentos tenham de se armar inclusive psicologicamente para, na inesperada hora H, agirem como Rambos e snipers? No ambiente escolar, mesmo um policial preparado, aposentado ou da ativa, conseguiria responder a eventos inesperados, como os das escolas Columbine e Raul Brasil? Lembremos do ocorrido com o capitão Bolsonaro, armado com sua Glock, no inesperado assalto de 1995.

O massacre da escola de Suzano/SP traz à tona, no debate nacional, as encruzilhadas que cabem aos brasileiros enfrentarem. Restringir a circulação do uso de armas por pessoas não ligadas aos serviços públicos de segurança ou aumentar sua circulação? Preparar, estruturar e fornecer condições melhores para as forças de segurança pública para lidarem com seu trabalho ou alimentar as milícias paramilitares e também grupelhos de vizinhos armados para a proteção da vizinhança? Trabalhar para a justiça social e para a cultura da não-violência e da paz na violenta sociedade brasileira ou alimentar a cultura da violência com o porte legal de armas acessíveis a amplos setores da população civil?

Em memória das palavras da professora Marilena Ferreira Umezu: “Somos a favor do porte de livros, pois a melhor arma para salvar o cidadão é a educação”. Evitemos Columbine enquanto ainda é tempo.

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