Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Coisas que acabam e coisas que não acabam nunca (uma crônica quase natalina)

Acabaram com muito, mas não acabam com as renas de Papai Noel sobrevoando o país tropical, neste dezembro de dois mil e dezenove

Natal
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Acabaram com os ônibus amarelos da Viação Pioneiro que me levavam toda sexta-feira pra Cataguases, queria ver o meu primeiro amor. Foi no meio do caminho, num bar qualquer que vendia broa de fubá e café doce e ralo no copo, que ouvi pela primeira vez Gal cantando Baby.

Acabaram com o Kit Xerife da Estrela, aquele que eu brincava com o meu irmão de bandido e mocinho. Eu disparava o revólver, a espoleta estourava, ele caia pra trás fingindo-se de morto. Ressuscitava, dava alguns tiros em mim e eu rolava pelo quintal a foro, quase morto.

Acabaram com as Estâncias Califórnia, onde o meu pai comprava tâmaras frescas vindas do Iraque, figos da Turquia, uva passas da Califórnia e latinhas de castanha de caju Iracema do nordeste brasileiro.

Acabaram com o peru vivo às vésperas do Natal, essa época agora. Ele ficava alguns dias no quintal da minha casa e quando chegava o dia 23, o meu pai dava uma talagada de Massangano pra ele, o bicho ficava tonto zanzando pelo quintal até que a faca cortava seu pescoço e jorrava sangue pra todo lado. Depois vinha o ritual da limpeza, tirar aquelas penas duras, abrir o peito, tirar os miúdos, temperar, injetar manteiga com uma seringa e levar pra assar na Savassi.

Acabaram com o uniforme de gala, sapatinhos de verniz, meias brancas de algodão, calça de um tropical quase inglês e uma camisa de malha grossa argentina, com o distintivo do Colégio Marista no peito direito. Na festa de encerramento do ano, só o meu irmão e o Péricles Andrade Barreto ganhavam medalhas de ouro.

Acabaram com a revista Realidade que eu comprava todo mês na banca em frente ao Xodó. Ia chegando o dia primeiro eu nem conseguia dormir direito imaginando qual seria a capa da Realidade. Em plena ditadura militar, por ali passaram Fidel Castro, Che Guevara, Luis Carlos Prestes, Luis Travassos e um índio da Amazônia, num número especial com trezentas e vinte e oito páginas

Anticárie Xavier (Foto: Reprodução)

Acabaram com o papel ao maço onde eu escrevia meus primeiros contos, primários, inocentes. Onde eu fazia prova de Francês e tomava bomba, onde eu desenhava o Roy Rogers no seu cavalo, onde eu treinava minha letra sonhando ser, um dia, calígrafo como Abdênago Lisboa.

Acabaram com o Anticárie Xavier, que protegeu os meus dentes de leite. Toda noite, minha mãe vinha com aquele comprimidinho que parecia feito de areia na palma de uma mão e um copo d’água na outra. Sempre antes de dormir, engolia acreditando que fazia efeito enquanto dormia, enquanto sonhava, enquanto crescia.

Acabaram com as matinês do Cine Pathé onde todo sábado, religiosamente, assistia os filmes da Atlântida. Comia jujubas, delicados e aquele chocolate em forma de moeda, tão difícil de descascar. Foi ali que aprendi a amar o Ronald Golias, o Ankito, o Jô Soares, o Mazzaropi e o Grande Otelo.

Acabaram com os Hermans Hermits que me deram coragem pra dançar com Suzana ao som de No Milk Today, Bus Stop e There’s a Kind of Hush. Eu colava o rosto no rosto dela bem na hora que eles cantavam there’s a kind of husssshhhh.

Acabaram com os cigarrinhos de chocolate Pan, aqueles que os meninos do bairro do Carmo brincavam de cinema, chiquérrimos como Humphrey Bogart em Casablanca, filmados com uma super-oito do filho de um deputado que morava em frente a minha casa, rico que era.

Acabaram com o bicho da goiaba, aqueles bichinhos brancos que apareciam rebolando todo dentro da fruta quando dávamos a primeira bocada. Quantos comi, quantos cuspi comendo goiaba com casca e tudo, sem um pingo de agrotóxico.

Acabaram com a corda do relógio que eu dava toda noite antes de dormir. Acabaram com aquele de pulso com corda automática, era só balançar o pulso tipo Sinhozinho Malta.

Acabaram com o trólebus que subia a Rua da Bahia e me deixava na Carangola, no ponto bem em frente ao Colégio de Aplicação, ao lado da Faculdade de Filosofia onde os gorilas entravam de vez em quando caçando comunistas.

Acabaram com tanta coisa. O Canal 100 de Carlinhos Niemeyer, a brilhantina Myrurgia, o Pasquim, os discos Copacabana, a presuntada Wilson, os catecismos do Carlos Zéfiro, acabam com o lápis atrás da orelha, o sabonete Vale Quanto Pesa, o catálogo telefônico, o trote, o Simca Chambord, acabaram com tudo isso, mas não acabam com as renas de Papai Noel sobrevoando o país tropical, nesse dezembro de dois mil e dezenove.

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