Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Chegamos ao fundo do poço

Um dia, quem sabe, vamos encontrar a saída desse buraco, uma escada, e nos livrarmos desse mal

Foto: iStock
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Sim, chegamos. Foi no final do ano de dois mil e vinte e um, ainda novembro. Descemos até o fim e tocamos com as mãos, o chão. Era lama e lodo, capim meloso melado, um forte odor de zinabre. Mas dava para caminhar devagar, descalço, claro.

Não tínhamos lanterna, vela, nem Waze e era difícil distinguir com clarividência, um palmo à frente dos nossos olhos. Mas mesmo assim, apalpando, dava para sentir alguns pedaços da fachada do Palácio da Alvorada, concreto armado, em demolição, quase perda total.

Havia ali também empilhadas as cascatas do Palácio da Justiça, todas secas. Os profetas estavam sem cabeça, nenhum vestígio da catedral. Até o pombal do Jânio Quadros deu para reconhecer, passando a mão, um enorme pregador.

Não vimos nenhum sinal de cultura. Filmes literalmente queimados estavam empilhados num canto, úmidos, oxidados, fora das latas. Terra em Transe, Cabeças Cortadas, Deus e o Diabo na Terra do Sol. Estavam lá também o Cabra Marcado para Morrer, Quando meus Pais saíram de Férias, Laranja Mecânica e Je Vous Salue, Marie. Era um abandono só.

Manuscritos de Chico Buarque e várias assinaturas de Julinho da Adelaide, uma em seguida da outra, como se fosse uma ficha de cartolina para abrir conta em banco, como antigamente.

No fundo do poço vi pessoas dependuradas num caminhão de lixo, revirando tudo e colocando de lado: latinhas de sardinha ainda com um restinho de molho de tomate, uma lata de Leite Moça que dava para passar o dedo e obter ao menos um dedo lambuzado de leite condensado. Congelados vencidos, caixinhas de leite estufadas, casquinhas de pizza queimadas, para aquelas pessoas valia tudo, tudo era banquete.

Começamos a explorar o fundo do poço, palmo a palmo, como se estivéssemos quase enxergando. O fundo do poço era enorme, do tamanho de um país. Um país que talvez tenha existido no passado.

Vimos aparelhos de televisão desligados, imagens congeladas do rosto de Amaral Neto, o repórter, que ninguém se lembrava mais. Vimos também num aparelho de tela plana, o logotipo, também frisado, do quadro O Brasil que eu Quero.

Estávamos a muitos e muitos metros abaixo do nível do mar. Teatro, não havia ali. Não sei se aquelas armações de ferro enferrujadas, quase podres, eram ainda do Roda Viva, daqueles dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu.

Nenhum vestígio de sol, de céu azul, de gaivotas voando numa boa, nada que fosse branco. Era pau, era pedra, era o fim do caminho, como se os objetos estivessem empanados, prontos para fritura, mastigados por dinossauros. Aquilo ali era mesmo um buraco, um lugar chamado Santa Rita do Fim do Mundo ou coisa parecida.

Respirávamos com dificuldade, as máscaras filtravam um pouco aquele odor permanente trazido pelo vento do Sul.

Planejávamos sair dali o mais rápido possível, mas ninguém tinha cabeça para sentar e traçar planos, apenas olhávamos pra cima, arranhávamos as mãos na terra que ia se desprendendo das beiras e caindo sobre aqueles objetos identificados e não identificados.

Um dia, quem sabe, vamos encontrar a saída desse buraco, uma escada, e nos livrarmos desse mal. Então, a primeira coisa que vamos fazer na luz do dia é abraçar um e aí a gente faz um país.

[Ninguém é de ferro. O cronista sai de férias por duas semanas, voltando em seguida]

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