Ediane Maria

Deputada estadual (PSOL-SP). Primeira trabalhadora doméstica a ocupar a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Coordenadora do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) e do Movimento Raiz da Liberdade.

Opinião

Censurar a Vai-Vai não vai deixar a PM menos violenta

Censurar uma agremiação que cumpriu o seu papel em levar arte e informação aos foliões é um ataque direto à cultura negra brasileira

Créditos: NELSON ALMEIDA / AFP
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O Carnaval mal acabou, mas já deixa saudades. Foi lindo ver as ruas tomadas de gente, brilhos e cores, numa comunhão total onde a alegria, como mote supremo, é marco civilizatório. Em São Paulo, mesmo com a retaliação do prefeito Ricardo Nunes (MDB), que impediu que mais de 100 blocos saíssem às ruas, o carnaval aconteceu e aconteceu para valer.

No sambódromo do Anhembi, as escolas de samba puderam, mais uma vez, com a sua pedagogia de encruzilhada – como bem diz Luiz Rufino – levar conhecimento para a população, contando histórias por meio da arte.

Um exemplo disso foi o que a tradicional agremiação Vai-Vai fez ao homenagear os 50 anos do movimento hip hop a partir da música Capítulo 4, Versículo 3, do álbum Sobrevivendo no Inferno, dos lendários Racionais MC´s.

Na disputa deste ano, vencida com louvor pela Mocidade Alegre, que levou Mário de Andrade para a avenida, a tradicional escola de samba do Quilombo da Saracura ficou em oitavo lugar, mas entrou para a história.

O impacto causado com a estética da rua, com pixos, graffiti e alegorias que narravam a história e também a criminalização do movimento hip hop em São Paulo, com base no racismo, foi tão grande que chegou na Bancada da Bala da Assembleia Legislativa, ao Governador Tarcísio de Freitas e ao prefeito Ricardo Nunes.

O representante municipal, inclusive, enviou à Liesa (Liga das Escolas de Samba de São Paulo) um ofício para que a Vai-Vai não ganhe recurso público em 2025. A justificativa? A suposta demonização da Polícia Militar no enredo, retratada como violenta.

Para essa turma, registros como o do portal G1, que apontam o aumento de 34% de mortes causadas por policiais militares entre 2022, com 248 assassinatos, e 2023, com 333, fora dados como o do Anuário Brasileiro da Segurança Pública, que mostra que 83,1% das vítimas de intervenções policiais são jovens pretos, são lendas do folclore brasileiro.

Ora, não é de hoje que sabemos que, infelizmente, a truculência policial age de forma contundente em manifestações populares e protestos de movimentos sociais. Tanto o samba quanto o rap – ambas artes pretas e urbanas – têm um longo histórico de retaliação e criminalização de seus atos, desde a sua criação até os dias atuais. Essas culturas irmãs nasceram e se criaram na rua, nos espaços públicos, se misturando à energia da cidade.

Só para se ter ideia, no pós-abolição, o samba era proibido por lei e sambista que era visto por policiais no espaço urbano levava borrachada. Graças a nomes como o da mãe de santo Tia Ciata, no Rio de Janeiro, que abria a sua casa para os músicos tocarem, além de negociar com políticos e a própria polícia, o ritmo pôde se desenvolver e ganhar o mundo.

Em 1972, durante a ditadura civil-militar, Seu Carlão da Peruche, que foi homenageado pelo meu mandato em 2023, teve uma das costelas quebradas pela polícia, escutou xingamento racista e presenciou o barracão todo quebrado. Até
para o DOPS teve de prestar depoimento e explicar que o enredo “Heróis da Independência”, cujo samba era da caneta de Geraldo Filme, não era coisa de comunista.

Num passado não tão distante, temos registros de dispersões violentas em 2023 contra os tradicionais blocos Agora Vai, Fuá e Espetacular Charanga do França, que desfilam na região central da cidade. Neste ano, foliões do Bloco Prato do Dia (Barra Funda, Zona Oeste) foram atingidos por balas de borracha e spray de pimenta no domingo de carnaval por agentes da GCM (Guarda Civil Metropolitana).

Em entrevistas, o governador de São Paulo afirmou que daria nota zero às fantasias da Vai-Vai que retrataram a ala violenta da polícia. A quem serve esse tipo de postura sem fair play, como diz o povo do futebol e sem senso crítico? A violência policial infelizmente é um dos pontos sensíveis da segurança pública e precisa ser discutida pela sociedade e por representantes do poder público.

Censurar uma agremiação que cumpriu o seu papel em levar arte e informação aos foliões é um ataque direto à cultura negra brasileira. Como bem disse a Vai-Vai, o rap e o samba não fazem parte da elite que insiste em boicotar, eles têm o corpo fechado, são a cultura popular. A rua é nóis e é nossa!

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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