

Opinião
Cash back
Recursos bilionários do propalado combate à corrupção na Lava Jato foram desviados para atender a interesses privados, como atesta a investigação da Corregedoria Nacional


O corregedor nacional de Justiça Luis Felipe Salomão determinou, no ano passado, a realização de correição extraordinária na 13ª Vara Federal de Curitiba e na 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região com o objetivo de apurar os abusos da Lava Jato. Como desdobramento da referida investigação, agora foram afastados, cautelarmente, juízes e desembargadores em razão de indícios de violações aos deveres de prudência, independência, imparcialidade e transparência, além de possível prática dos crimes de peculato, prevaricação e corrupção.
O corregedor apontou, mais especificamente, que “a ideia de combate à corrupção foi transformada em uma espécie de cash back para interesses privados”, na medida em que foram envidados esforços para que recursos bilionários obtidos por meio de acordos de colaboração premiada, leniência, apreensão de bens e cooperações jurídicas internacionais fossem desviados para proveito de uma fundação privada da Lava Jato. Foram apontados ainda reiterados descumprimentos de ordens do Supremo Tribunal Federal.
Referidos afastamentos cautelares são, inegavelmente, mais um importante capítulo de desfazimento da farsa lavajatista. Como é sabido, os últimos anos foram emblemáticos em revelar os escândalos da Lava Jato, a qual acarretou efeitos nefastos para os direitos fundamentais e para a nossa democracia, consoante inclusive reconhecido por instâncias do Judiciário brasileiro e das Nações Unidas. Muito além de violar formalismos processuais ou de manifestar, simplesmente, uma interpretação rigorosamente punitivista de normas jurídicas, a Lava Jato fulminou a própria relação que se estabelece entre o Estado e os indivíduos em termos civilizatórios, subverteu a nossa democracia constitucional e destruiu mercados estruturantes da economia brasileira.
O projeto de domínio político e de ascensão messiânica de agentes públicos fica evidenciado, inclusive, através do conhecimento, agora inquestionavelmente público e notório, de que a Lava Jato visava criar uma fundação privada, com um grupo restrito de acionistas minoritários, que receberia aportes bilionários derivados do propalado combate à corrupção.
Ademais, a espetacularização de investigações e operações policiais, a teatralização do devido processo legal e o apogeu do discurso punitivista valeram-se da quebra do princípio da imparcialidade, de cooperações jurídicas internacionais selvagens, de vazamentos seletivos de informações sigilosas, de colaborações premiadas e de acordos de leniência como meios irrefutáveis de prova, de tratamento desumano e degradante a investigados e réus e, dentre inúmeros outros exemplos, de buscas, apreensões, conduções coercitivas e prisões preventivas ilegais.
Muito além de mero erro judicial, solipsismo, ativismo ou de qualquer manifestação de decisionismo voluntarista, a Lava Jato valeu-se de desafiadoras estratégias de caça às bruxas e de deslegitimação. Regras de prevenção abrangentes, modelo de força-tarefa fortalecedor de personalismos e de protagonismo individual e fragilização do sistema acusatório serviram às aspirações individuais dos seus integrantes.
A história humana não ocorre através de fases estanques, como às vezes a descrição didática em períodos transparece. Elementos de conformação política e social do período anterior podem ser – e comumente são – identificados nos subsequentes. Inexistem, inclusive, garantias contra retrocessos e involuções. O autoritarismo e a exceção lavajatistas devem ser constantemente desnudados.
A exceção caracteriza-se por uma provisoriedade inerente, pois não trata de extinguir o Direito, mas de suspendê-lo em situações específicas. Deparamo-nos, ainda, com um poder que se apresenta de forma bruta e, por consequência, por sua não autolimitação, nem mesmo por qualquer regra de coerência ou racionalidade. A decisão judicial de exceção não se influencia nem produz “jurisprudência” para situações semelhantes juridicamente. Mudando-se os atores envolvidos ou o fim político, muda-se a decisão.
Não podemos subestimar a Lava Jato. O olhar para o futuro pressupõe o reconhecimento dos nossos fracassos, a insuficiência dos nossos manuais clássicos em responder aos desafios contemporâneos e a falibilidade das nossas instituições. O efetivo avanço na prevenção, na investigação e na repressão da corrupção no Brasil requer, ainda, preservação da memória histórica e, de acordo com o devido processo legal, o sancionamento de agentes públicos. Nesse contexto, os mais recentes desdobramentos investigatórios da Lava Jato assumem particular significado e relevância. •
Publicado na edição n° 1307 de CartaCapital, em 24 de abril de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Cash back’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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