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Médica, professora titular da UFRJ, coordenadora do Grupo de Pesquisa e Documentação sobre Empresariamento da Saúde

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Carta na manga

O Ministério da Saúde pode e deve almejar uma homogeneização de preços. E que problemas similares sejam tratados com idêntica qualidade

Carta na manga
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Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
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“Agora Tem Especialistas” é o programa do Ministério da Saúde para ampliação de acesso e aumento dos valores pagos pelo SUS para determinadas consultas, exames e cirurgias. Tradução prática de uma das funções do Estado, a da compra de serviços, do tipo pagou levou, promete resolver o cruel racionamento do uso de assistência médica no País. Tudo, em princípio, parece bem engendrado. Troca de dívidas por procedimentos de média e alta complexidade e uma tabela SUS Plus potencializariam esforços para mitigar desigualdades que comprometem a vida.

Poder e regulação adequada tornariam o “Agora” permanente no futuro. Clínicas, hospitais filantrópicos e privados e empresas de planos de saúde, devidamente remunerados pelo governo, tenderiam a integrar uma rede unificada de serviços de saúde de excelência. Tudo acabaria bem, o atual sistema de saúde fragmentado e segmentado, com problemas de qualidade e segurança no atendimento, atingiria uma universalização efetiva, semelhante aos modelos “único pagador” de países com renda alta.

Portanto, ir às compras não é pecado, o que deve ser evitado, especialmente com recursos escassos, é ignorar experiências e evidências internacionais e nacionais. Todos os sistemas modernos de saúde são predominantemente financiados publicamente, a maior parte por impostos. Esse padrão corresponde a três atributos básicos da organização de redes de saúde: quem paga, quem é atendido e quem e quanto recebe pelos cuidados prestados. Financiamento fiscal distributivo vem acompanhado por taxas de utilização correlacionadas com problemas de saúde, melhor acesso para aqueles com menores rendimentos e maior capacidade para controlar gastos.

Em sentido oposto há países, incluindo o Brasil, nos quais o financiamento predominantemente privado oferece maiores oportunidades de rendimento para médicos e hospitais, e ainda melhores aos especialistas. Tentar que o SUS pague bem sem sequer mencionar a estrutura perversa dos gastos tributários, que protege os mais ricos e saudáveis, parece uma aposta muito arriscada. Teremos quantas e quais tabelas? A do SUS paulista, apresentada como mais apetitosa do que a federal, a dos hospitais que só atendem o segmento AAA, a do “Agora”?

Um exame mais atento dessa variedade de tabelas, na realidade das diferenças de pagamento, em tese pelo mesmo procedimento, valorizado de acordo com uma estratificação oculta da relevância das vidas humanas, desvela desigualdades sustentadas por estratégias permanentemente renovadas de distinção social. Segmentos médios de renda foram rebaixados por planos de saúde, a garantia de acesso a hospitais mais reputados passou a ser prerrogativa para um grupo populacional ainda mais seleto. Grandes grupos empresariais deixados à vontade para exercer suas estratégias expansionistas competem criando mercados e impondo preços.

Existe um debate sobre tabelas na saúde, modelos de remuneração. Mesmo valor para o mesmo procedimento com ou sem adicional para distância, lugares remotos, com ou sem pagamento extra para emergências, regimes de trabalho de plantão, com ou sem remuneração da produtividade. Aqui é diferente. Define-se o preço de acordo com a suposta capacidade de pagamento, do governo ou do cliente. O SUS paga pouco, remediados duas vezes vs. ricos dez vezes. Preços são ajustados ao status socioeconômico, à hotelaria, ficam distantes dos custos efetivos.

O Ministério da Saúde pode e deve almejar uma homogeneização de preços. Pode e deve ambicionar que problemas de saúde similares sejam tratados com idêntica qualidade e quantidade de procedimentos. São cartas na manga. No jogo aberto até o momento, a intenção revelada é pura e simplesmente “fazer mais”. Contudo, os parâmetros para estimar quanto será acrescentado pelo “Agora Tem Especialistas” sugerem cautela. Os 4,4 bilhões de reais previstos para o programa (em dois componentes, contratação com dispensa de licitação e troca de créditos tributários) representam 1% do total de recursos públicos para a saúde (somando União, estados e municípios), 8,5% do orçamento para a saúde do estado de São Paulo e o dobro do investimento anunciado para a construção de um hospital inteligente.

Acabar com a fila admite duas estratégias: a primeira consiste em ampliar a oferta pública, a segunda, sumir com as listas, dividindo e redividindo-as por municípios e estabelecimentos. Redução de tempo de espera e objetivos sanitários estão correlacionados, mas não são intercambiáveis. Quando o controle do cassino é inalcançável, recomenda-se que o crupiê não confunda a escolha política de subfinanciamento do SUS com inviabilidade econômica. •

Publicado na edição n° 1370 de CartaCapital, em 16 de julho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Carta na manga’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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