Marina Ruzzi

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Mestra em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade de São Paulo, com foco em políticas de superação da desigualdade de gênero. Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo. Sócia da Braga & Ruzzi Sociedade de Advogadas. É Professora e Coordenadora do Curso de Advocacia em Direito das Mulheres (Welt Cursos Jurídicos) e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM)

Ana Paula Braga

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Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo e pela Université Lyon III (França), Pós Graduanda em Direito de Família e Sucessões pela PUC-SP, é integrante da Comissão da Mulher Advogada da OAB/SP. Sócia da Braga & Ruzzi Sociedade de Advogadas. Professora e Coordenadora do Curso de Advocacia em Direito das Mulheres (Welt Cursos Jurídicos)

Opinião

Carta aberta à mídia sobre o tratamento à vítimas de violência de gênero

A lupa investigativa é constantemente colocada sobre a vítima e não no agressor, o que gera revitimização de quem sofreu abusos

Cruzes em frente ao congresso pelo Dia Internacional de Combate à Violência Contra a Mulher. (Foto Lula Marques)
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Em um Estado democrático, a mídia ocupa um papel de especial relevância. É através da pluralidade de vozes, do rigor jornalístico na apuração de notícias e da escolha de pautas muitas vezes subjugadas ao obscurantismo, que conseguimos povoar o imaginário coletivo de ferramentas para leituras mais profundas da realidade.

Neste sentido, a questão da violência contra a mulher tem ganhado especial destaque na pauta midiática, especialmente após a chamada “primavera feminista” e o maior interesse social nos assuntos relacionados à violência de gênero. Com isso, notícias sobre violência doméstica, estupro, assédio sexual, dentre outras, estão corriqueiramente sendo tratadas pelos veículos de comunicação, o que é essencial para colocar tais violências no debate público.

O papel da imprensa em noticiar esse tipo de caso é essencial, pois leva ao conhecimento popular vivências cotidianas das mulheres, antes relegadas à invisibilidade e naturalização social. Contudo, preocupa a forma como tais eventos são, muitas vezes, abordados, sem preocupação com a revitimização das mulheres, excessiva exposição de suas imagens e intimidades, bem como com reforço de estereótipos de gênero e questionamento recorrente da credibilidade das denúncias.

Canais de comunicação têm uma grande responsabilidade – prevista na Constituição e em leis – de garantir que as informações não propaguem discurso de ódio e que tenham respeito à dignidade humana, em especial daqueles e daquelas que estão mais vulneráveis na estrutura social.

A grande transformação social no que tange aos direitos das mulheres é recente. Não faz nem quinze anos que as mulheres brasileiras conseguiram conquistar o primeiro instrumento legal de proteção à violência doméstica, a Lei Maria da Penha. Faz dois anos que tivemos uma reforma nos crimes sexuais que retirou muitas das dificuldades que as sobreviventes tinham para poderem se socorrer na justiça. Esta vitória, inclusive, foi possível por conta do apoio midiático ao episódio que suscitou o debate a respeito do assédio sexual, quando aquele ônibus na Avenida Paulista foi parado após uma passageira ter sido importunada sexualmente.

Contudo, por mais que essas sejam conquistas muito importantes, a violência de gênero tem suas raízes na cultura, nos valores partilhados na sociedade, que se pautam muitas vezes em estereótipos de gênero que subjugam as mulheres.

São esses estereótipos que naturalizam a violência, por inverter a relação de forças e pressupor que o sofrimento da vítima é inferior à honra de um homem, inferindo que as mulheres que denunciam têm uma agenda oculta e que, se os homens cometeram alguma forma de violência, foi em decorrência de provocações injustas. Especialmente se esse homem não se encaixar na figura do imaginário popular do “bandido”. Ou seja, pressupõe-se que aquele homem “trabalhador”, “apaixonado”, “pai de família”, muitas das vezes branco e rico, está sendo injustiçado por aquela denúncia realizada ou, ainda, romantiza-se o crime e seus agressores, entendendo-os como “passionais”.

A lupa investigativa é constantemente colocada sobre a vítima, ao invés do agressor: quem ela é, o que consta na sua vida pregressa, o que fez para merecer a agressão sofrida e como reagiu após o fato. No sentido contrário, agressores e assassinos de mulheres têm o seu passado revirado em busca de bons antecedentes ou razões que justifiquem o cometimento do crime.

Exemplos não faltam. Desde o histórico caso de Eloah Cristina, cujo assassino foi vergonhosamente entrevistado em rede aberta enquanto mantinha a vítima em cárcere privado, até o caso mais recente de Nájila Trindade, que teve sua vida completamente explorada pelos grandes canais de comunicação, ou, ainda, no escândalo de centenas denúncias contra o médium João de Deus, em que as vítimas, ainda que buscassem anonimato, foram investigadas e expostas pela imprensa, inclusive com indagações a respeito de sua moral e vida íntima e sexual.

Justamente pela responsabilidade no direcionamento da opinião pública que a mídia possui, a abordagem oferecida às matérias jornalísticas pode ser capaz de provocar grave revitimização dessas mulheres. São casos que desencorajam qualquer mulher a procurar socorro, por temer se tornar a próxima vítima de uma máquina irresponsável que não dá aos seus casos ou aos seus relatos o respeito que merecem.

O que vemos é a exploração excessiva, através de matérias que escrutinam casos de denúncia, seja nas delegacias ou tribunais, seja na internet, sem o devido comprometimento com um tratamento respeitoso e digno, conforme previsto no art. 221 da Constituição Federal. Cobrar de vítimas depoimentos em contextos tendenciosos, dar espaço para acusados incitarem ataques pessoais às denunciantes nos “tribunais de opinião” serve apenas para manter a estrutura machista operando: mulheres silenciadas, pois se levarem adiante as suas denúncias, serão humilhadas e caladas com a exposição excessiva e irresponsável dos canais de comunicação.

Aqui trazemos um exemplo recente, dos relatos escritos pelas atrizes Julia Konrad e Juliana Lohmann a respeito de violências de gênero sofridas em relacionamentos amorosos passados. São denúncias que nitidamente não tinham a intenção de expor seus possíveis abusadores, tanto que nenhum elemento distintivo é empregado para identificá-los.

Julia diz: “meu único objetivo é alertar mulheres para situações abusivas que possam estar vivendo neste momento”, e Juliana a acompanha: “Talvez, se eu tivesse lido um relato como esse, pudesse ter compreendido melhor a situação e eles não estariam impunes”. Apesar de deixarem claros quais são os seus objetivos ao dar visibilidade a fatos tão íntimos, incontáveis são as matérias jornalísticas que as procuraram com o objetivo de que confirmassem a identidade de seus abusadores o que, não apenas pode as colocar em risco legalmente, como também viola a intimidade de pessoas que têm o direito de serem reservadas em relação a violências sofridas.

Esta carta tem o principal objetivo de lembrar os grandes canais de comunicação a respeito dos compromissos firmados em legislação e do seu papel na promoção de um espaço público mais seguro, e que de fato nos ajude a caminhar para uma sociedade menos machista.

A Lei Maria da Penha, por exemplo, determina claramente, em seu artigo 8º, “o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar”, por entender que uma mudança de cultura é necessária para garantir uma sociedade mais ética e comprometida com o combate à violência de gênero e a promoção de igualdade, o que só será possível se tratarmos desses casos com a sensibilidade que eles merecem.

É necessário que os canais de comunicação assumam a responsabilidade de garantir privacidade às vítimas, de evitar ser palco para ataques pessoais e misóginos pautados em estereótipos e que assumam seu compromisso com a erradicação da violência de gênero. Por isso, seu foco deve ser na informação e não na especulação que dá espaço para ataques pessoais. Há inclusive materiais disponíveis da internet, como os manuais de boas práticas de jornalismo da ONG Think Olga, que trazem exemplos práticos de como abordar casos tão sensíveis.

Não adianta nada fazer campanhas de combate à violência de gênero e não firmar um compromisso de veicular matérias livres dessas mesmas violências de gênero simbólicas. É um compromisso necessário, levando em consideração o papel que a imprensa livre tem na constituição de uma democracia, de assegurar espaço para que possamos nos despir dessas tradições de revitimização das mulheres que sofrem violência, para construir uma de igualdade e de desnaturalização do machismo.

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